Kingdom Come: Deliverance – Análise

É uma tendência que se tem registado nesta indústria, uma diminuição das aventuras a solo e lineares em favor dos jogos em mundo aberto, nos quais as missões principais se cruzam com missões secundárias, “quests” de todas as espécies, formatos e feitios que se prolongam como uma manhã sem fim. A ideia é criar mundos cada vez mais amplos e ambiciosos, abertos a uma exploração funda e drástica, associada a uma construção significativa de sistemas. O jogador submete-se a uma realidade incontornável da qual dificilmente escapa. Basta considerar as evoluções mais recentes das séries Zelda e Mario, para se perceber a importância crescente dos grandes mapas. As produtoras competem pelo tamanho e dimensão das aventuras, cada uma a jogar no seu terreno, mas parece que poucas, para não dizer raras, reflectiram realmente sobre a oportunidade do realismo.

O que se pode fazer no âmbito da simulação já vimos nalguns sub géneros. Das grandes batalhas nos jogos de estratégia (rts) aos combates armados (Bloodborne e Dark Souls), proliferam experiências de grande qualidade, delimitadas no factor jogabilidade. É mais fácil, aliás, começar por entregar armas e poderes sobrenaturais aos heróis, elevando o seu expoente de habilidade, do que aprender a combater com uma espada de madeira. Nos jogos de cariz medieval é frequente esse cruzamento de domínios, entre o natural e o sobrenatural. The Witcher 3 é particularmente notável nessa captura e influente, como foi a série Morrowind. Da sua riqueza e vastidão se projectaram algumas das mais impressionantes missões e “quests”, ainda que num equilíbrio de forças com o escritor Andrzej Sapkowski, o meritório e distinguível escritor sem o qual o jogo não seria possível. A Bethesda, com Fallout e Morrowind, também se distingue na criação dos jogos em mundo aberto.

Kingdom Come Deliverance, produzido pelos checos do Warhorse Studios, é fruto da garantia de sucesso dos jogos em mundo aberto, uma tendência generalizada que levou Daniel Vávra (ex-produtor da 2K Czech), o director do jogo, a acreditar no sucesso de uma campanha criada a partir da reunião de fundos dos investidores e dos fãs. Ele quis criar uma aventura medieval que pudesse singrar não pela dimensão mas pelo realismo e naturalidade dos eventos, composta por uma visão muito fiel e descritiva do que era, no dealbar do século XV, a vertente militar e política no centro da Europa, descrevendo com minúcia a componente social.

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Os diálogos não só estão bem escritos como as personagens conseguem destacar-se, sobretudo pelo tom cómico de algumas situações, mas a época medieval é vista também como a idade das trevas, assumindo o contexto proporções significativas.

Para um estúdio tão pequeno, pouco experimentado a produções ambiciosas e só ao nível dos grandes, a Warhorse actua quase como um cavalo de Tróia, sujeitando-se às vulnerabilidade e arestas por lapidar de um projecto que é porventura demasiado arrojado para as suas capacidades. Kingdom Come Deliverance pode muito bem apresentar-se como a mais realista aventura medieval em formato role play e acção. Podemos pensar num Witcher 3 como um jogo influente na estrutura e como mundo aberto, mas este jogo é diferente logo à cabeça, ao atirar-nos para o último lugar da carruagem. Se queremos chegar à frente como herói teremos de suar e trabalhar imenso. Neste jogo não começamos como um super herói, nem temos grandes poderes à nossa disposição. Somos um “peasant”, o filho de um ferreiro que, como tal, se sujeita a tarefas mundanas, quase triviais e de pouca complexidade. Se alguma vez pretendemos comandar um exército ou mesmo ocupar uma posição relevante na corte, o caminho é grande e cheio de obstáculos.

Este é o desafio da vida de Vávra, tornar possível e, mais do que isso, produzir qualidade numa obra cuja dimensão parece estar ao alcance de apenas um punhado de estúdios. O sucesso da campanha no “kickstarter” demonstra o sucesso da visão do produtor checo mas não valida automaticamente o resultado esperado. Desde o pesado “loading” inicial até às posteriores quebras nas transições entre cinemáticas e gameplay, assim como alguns bugs e imenso “pop up”, que alguém quis enfiar o Rossio na Betesga. Estes assinaláveis reparos não impedem o destaque dos méritos de KCD, especialmente o realismo e a ausência do sobrenatural na modelação deste especial período da História do século XV, na Europa central.

Inicialmente, KCD dá sinais de fuga a grande parte dos lugares revisitados por outros títulos em mundo aberto, abrindo “tutoriais” em missões quase triviais como juntar matérias primas para forjar uma espada ou adquirir cerveja numa taberna. Que interesse tem isto? Parece ser plausível a questão. Vale a paz e tranquilidade, reinantes nas primeiras horas, em jeito de aprendizagem, mas só depois da primeira guerra e reviravolta é que seguimos Henry – o “peasant” – com outros olhos, descobrindo encantos não só numa história que para além de muito bem contada (se editassem em livro eu comprava-o), oferece quests que paradoxalmente são descartadas noutras produções porque aparentemente não são tão essenciais, como aprender a ler ou invadir uma propriedade privada a fim de obter um objecto raro com o qual conseguimos pagar uma dívida.

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A cavalo também é possível combater e desferir pesados golpes nos adversários.

Esse ordenamento mundano e simultaneamente realista, oferece um sentido de progressão invulgar, justamente pelo travão que coloca na nossa subida de “ranking”. Começamos por baixo e lá permanecemos. Como um porco que não é capaz de fugir do “chiqueiro”, também Henry não parece muito incomodado por lhe faltar habilidade para manejar uma espada ou atirar com sucesso ao arco, mesmo que pretenda vingar a morte dos pais e esse seja no fundo o grande mote desta incrível campanha que encerra uma visita profunda ao século XV.

Num período marcado por grande instabilidade das monarquias, constantes batalhas e disputas pelo poder, a região da Bohemia, situada no coração da Europa, é rica em recursos, cultura e de uma beleza tocante. Desperta o interesse de soberanos ambiciosos, como Sigismund the Red Fox, rei da Hungria, que ao tomar conhecimento da ascenção ao trono do tresmalhado Wenceslas, filho do grande imperador Charles IV, movimenta com sucesso as suas tropas, atacando sem qualquer piedade, vilas e fortificações, no que parece ser um golpe de génio mas também um banho de sangue. Henry é apanhado de surpresa e vê os seus pais trespassados pela espada: o sangue derramado corre nas suas veias.

Henry – o herói -, quem diria. Assim mesmo, uma personagem oriunda de uma pequena vila, um errante que torna a agrura numa oportunidade. A sua loucura para as patifarias e outras habilidades é a tentação pelo diabo, paredes-meias com a moral e ética, numa série de encontros que nos levam a escolhas e decisões com impacto no mundo que nos rodeia. Não há editor de personagem. Henry é mesmo assim, aquela figura masculina lugar-comum, um jovem mal vestido, manchado de sangue, roto e pobre, cada vez mais gasto à medida que os dias passam. Só vemos o seu rosto quando se abre uma cinemática. A perspectiva na primeira pessoa parece aliviar as nossas vistas.

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Os produtores procuraram descrever os locais e vilas com autenticidade.

Levando a mão ao bolso, o dinheiro não abunda e como tal são imperativas missões que proporcionam uma via para receber. Alternativamente podem trocar coisas que não mais necessitam num mercador. O dinheiro é essencial se quiserem ter comida por forma a não acabarem fracos, de estômago vazio e com a sensação de rato na barriga, pálidos e sem resistência. Poderão roubar, invadindo a propriedade privada e abrindo cofres com recurso ao sistema “lock pick”, mas os bens podem ser identificados e como ninguém pretende tornar-se receptador e incriminado, correm o risco de ser identificados e ver o dia chegar ao fim mais cedo num banco da cela.

O grau de minúcia é elevado. Podem esmifrar negócios, regatear preços e tornarem-se até num mestre da lábia. Há um sistema que vos deixa definir o que estão dispostos a pagar ou oferecer por um objecto do vosso interesse. Com tantas opções e regras, o códex é um manual de instruções devidamente elaborado. Nele encontram todos os “tutoriais” e livram-se de todas as dúvidas após uma consulta rápida. É impressionante a quantidade de conteúdos que são introduzidos ao longo das primeiras horas. Nem estão só em causa as missões secundárias e principais. A estrutura role play envolve diversos atributos, ao nível do combate e da personalidade da personagem, com decisões que afectam a interacção com os demais npc’s. A organização e design do mapa é muito eficaz. Podendo parecer algo confuso ao começo, a breve prazo revela-se prático e de utilização muito intuitiva, mas requer todo o nosso compromisso através de um contacto por vezes um pouco prolongado.

Não podem gravar o jogo a todo o instante e o processo de gravação automático não é mais do que regular. No final das missões principais o jogo grava automaticamente, mas só nesses momentos. Se estiverem a meio de uma missão e quiserem deixar o jogo sem perder tudo o que acumularam, terão que beber um produto alcoólico que não sendo fácil de encontrar e para além de custar uns cobres, vos deixa num estado de sonolência. O olhar torna-se difuso e as pernas trôpegas. Mas nem são só os efeitos do álcool que entorpecem os sentidos. A fome e o cansaço criam dificuldades suplementares e facilmente perdemos os sentidos se não acautelarmos comida para as missões mais exigentes.

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O combate é um dos pontos mais sensíveis, ficando por vezes a sensação de alguma latência nos movimentos.

KCD oferece muito daquilo que podemos esperar num jogo em mundo aberto. Há um ciclo dia-noite, um tempo para descansar e recuperar forças numa qualquer cama improvisada, que bem pode ser um celeiro ou um quarto de um aldeão que não se incomode com a nossa presença (até podemos comer do tacho dele). O mapa é grande, repleto de estradas em terra batida, montes, vilas, aldeias pitorescas, cidades, castelos e fortificações. A demora de uma grande viagem a pé pode ser minimizada pelo recurso ao cavalo ou então, de forma ainda mais célere, pelos pontos de viagem rápidos, através dos quais observamos o movimento automático da nossa personagem sobre o mapa. Pelo caminho podemos encontrar vagabundos ou ladrões dispostos a arruinar o nosso dia exigindo que lhes entreguemos uma soma monetária sob pena de nos atacarem. É neste momento que podemos dar uso à espada e ao nosso melhor exercício de combate.

A arte do combate em KCD requer treino, prática e paciência. A preocupação dos produtores em criar um sistema algo complexo baseado numa articulação entre ataques, contra-ataques, movimentos esquivos e golpes unidireccionais – a nota de realismo – resultou num sistema que não fica nada a dever à simulação. Sobre a implementação, o resultado não é tão satisfatório como gostaríamos que fosse. É evidente, desde a aula inicial, a dificuldade acima da média, mas esperávamos que o sistema pudesse tornar-se mais prático. Isso não acontece e frequentemente temos a sensação de que muito poderia ser feito para tornar melhores as nossas acções. O mesmo acontece com o tiro ao arco, algo frágil e pouco preciso. Só em circunstâncias muito especiais conseguimos obter os melhores resultados. Houve um esforço em respeitar ao máximo as dificuldades por que passaram os archeiros e cavaleiros, com as suas pesadas espadas e machados. As vantagens e desvantagens estão necessariamente reflectidas, mas nem sempre é transmitida a melhor sensação física, como se existisse alguma latência nos golpes.

As características e habilidades da personagem são passíveis de evolução consoante as decisões tomadas em importantes encontros. Podemos incutir um código moral e ético na personagem, respondendo dessa forma no tempo limite que nos é dado, elegendo a opção que nos parece mais correcta. O temperamento desviante dará uma evolução diversa à personagem e afecta negativamente a sua presença no mundo, abrindo frequentes conflitos e uma constante onda de oposição, conflitos e até guerras. É o regime do medo e da imposição que se instala por oposição à paz e progresso dos reinos.

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Realismo é a palavra que melhor define esta experiência medieval em mundo aberto. Não esperem alvejar facilmente o centro do alvo.

O mundo é vivo e dinâmico. Há uma descrição muito realista daquele típico ambiente feudal e medieval, sobretudo na organização das missões. As principais levam-nos até contextos de conflito e posições concretas numa demanda que tem o seu ponto máximo na nossa formação da personagem. Já as missões secundárias, muitas delas agradáveis e assentes em objectivos diversos, traduzem grande parte da vivência em sociedade no século XV, reflectindo aspectos mundanos, quase triviais. O ritmo é lento e há toda uma minúcia que em última instância pode levar ao desespero. Com tão grande ênfase no realismo, não é de esperar outra coisa e isso revela as singularidades deste KCD.

Nota para as paisagens belíssimas e para uma arte notável, em sintonia com as descrições visuais e trabalhos deixados pelos artistas que viveram a época. A banda sonora apresenta bons temas. Graficamente, estamos perante um trabalho hercúleo, que tem tanto de promissor como desapontante. Digamos que com mais produção, porventura uma equipa técnica mais apetrechada e outros valores no orçamento, bem longe poderia ter ido o Warhorse. Os frequentes bugs, perda de texturas e um “pop up” sempre presente evidenciam as dificuldades em tornar o jogo operacional. Apesar dos visíveis e quase sempre presentes aspectos negativos, não há como fugir ao fulgor artístico, à beleza dos castelos e à definição da região. Registamos na memória os melhores momentos, sem deixarmos de sofrer com a performance técnica aquém do desejável. O pesado loading inicial quase nos leva às lágrimas sempre que começamos uma partida, enquanto somos forçados a assistir à mesma cena inicial observando o indicador de carregamento num lento progresso. Depois das opções vem outro loading, até que por fim despertamos em pleno mundo medieval.

KCD poderia ser só mais outro jogo em mundo aberto, porventura menos dado ao risco e limitado na ambição. Daniel Vávra e o Warhorse Studios quiseram correr sobre a fina corda e manter fiel a sua visão para um jogo de role play medieval que transpirasse realismo pelos poros, uma aventura tão genuína e detalhada quanto possível desse distante mas simultaneamente tentador século XV, sem sombra do sobrenatural. A progressão mais lenta embora ao mesmo tempo realista e condicionada, parece activar em nós um mecanismo de alerta. Até nos sentirmos aclimatados ao propósito e visão dos autores ainda correm algumas horas. Percebida a estrutura e o quadro narrativo (encerra belos momentos de comédia, com diálogos muito bem escritos) vislumbramos os méritos desta muito particular e incisiva campanha medieval, que mesmo com os seus percalços de ordem técnica, cumpre uma meta que outras produtoras deixaram por concretizar. É terreno fértil que o cavalo de guerra não desaproveitou.

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