TT Isle of Man: Ride on the Edge – Análise

Se o género de desporto motorizado em duas rodas ainda continua vivo, em boa parte isso se deve à produtora italiana Milestone. Muito apoiada pela Bandai Namco, tem sido nos últimos anos um verdadeiro berço de jogos muito dignos e aprazíveis, entre os quais se destacam franquias como Moto GP, MX GP, Ride, Ducati 90th Anniversary, Valentino Rossi: The Game, e o mundial de Superbikes. Longe vão por isso os tempos da magnificência das produções de índole arcade, desenvolvidas primordialmente por uma Sega muito experimentada e hábil, tanto na caracterização, à sua maneira, de grandes eventos desportivos como Isle of Man TT (Manx TT Super Bike), bem como no estilo único e inconfundível de Harley-Davidson & LA Riders ou o bicilindrico Hang-On.

Recentemente, juntou-se à extensa lista de bikers da Milestone este TT Isle of Man, criado pelo estúdio francês Kylotonn, o mesmo da franquia WRC, cujos efeitos amplamente positivos e encorajares se fizeram sentir na última edição. Ambos os estúdios não são propriamente dos maiores no âmbito dos jogos motorizados e de alguma forma se manifesta a exiguidade dos meios e recursos à sua disposição. No entanto, não deixam de conseguir trabalhos meritórios, superando até aquilo que se julgava possível. Paira sempre o fantasma da incerteza sobre muitas destas produções, mas enquanto estes estúdios europeus, para além da paixão evidenciada (quando estive em Itália, na Milestone, percebi que eles são mesmo apaixonados pelas duas e quatro rodas), receberem os apoios de editoras, estando estas conscientes de que há espaço para fazer mais e melhor mesmo com poucos recursos, os fãs podem estar sossegados.

TT Isle of Man é essa exacta correspondência para os fãs, a transmissão de um evento peculiar que há muito andava arredado dos videojogos e que prima por uma série de peculiaridades que fogem à estrutura comum das corridas em pista. Levar motas potentes, produzindo velocidades acima dos 300 km/h, em estradas do dia-a-dia, abertas ao público, em zonas montanhosas ou de grande densidade urbana, com o limite dos passeios e muros tão próximos, ninguém duvida do risco que correm os pilotos sempre que todos os anos testam os nervos, as motas e quebram recordes.

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Alinhado na partida.

Mundialmente, o TT Isle of Man é categorizado como o mais perigoso evento motorizado, contabilizadas mais de duas centenas de fatalidades desde a corrida inaugural em 1907. Em mais de cem anos de história os pilotos arriscaram as suas vidas por um punhado de fama e um acto de bravura, quebrando constantemente novos recordes de velocidade máxima e atingindo médias cada vez mais elevadas. Os feitos alcançados por vencedores coroados como John McGuiness, com 73 corridas disputadas tem 23 vitórias na classe TT, Joey Dunlop com 26 vitórias (a última alcançou-a com 48 anos) são quase de natureza sobre-humana, ao nível de verdadeiros super-heróis. Basta pesquisarem no youtube o primeiro nome dos indicados para observarem a perigosidade do evento.

O que torna tão atractiva (e simultaneamente letal) a premissa é o percurso consistir numa estrada de asfalto sinuosa, como uma nossa nacional. Um trajecto que pode ser percorrido diariamente, aberto ao público, mas que é fechado durante o evento proporcionando provas do tipo “time trial”. Se numa base de “time trial” é impossível remover o perigo, aplicar uma grelha de pilotos seria unificar as situações potencialmente perigosas.

O segmento inicial – a apresentação de TT Isle of Man – na forma de “trailer” sobre o que vos aguarda, dirá mais a quem porventura desconheça este enorme desafio. Ao todo são 60 quilómetros de estradas sinuosas e rápidas, zonas montanhosas e urbanas. É um percurso de cortar a respiração que a Kylotonn se esforçou por recrear tal como é na realidade, assegurando uma reprodução numa escala de 1:1. 60 km, as suas 264 curvas e os pontos relevantes como Glen Helen ou Parliament Square. Existem outros cenários majestosos que a história converteu em icónicos, como o grande Nurburgring, Pikes Peak e até Le Mans, mas a persistência da organização de TT Isle of Man não tem paralelo.

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Os muros ladeiam o asfalto, pelo que qualquer erro a grande velocidade pode criar uma fatalidade.

Não dispondo dos recursos para criar uma obra de grandes valores de produção, nem por isso a Kylotonn desperdiçou a oportunidade em conceber um jogo tão fiel e genuíno quanto possível. Parece ter assente malas e bagagens na ilha, ficando por ali umas temporadas, ao mesmo tempo que estabeleceu contacto e obteve “feedback” de alguns dos mais conceituados pilotos, nomeadamente McGuiness e Peter Hickman. Aquele diz – pode ler-se na página oficial – que é óptimo para aprender as linhas.

Para lá do assinalável e fantástico percurso, estão presentes ainda 23 pilotos e respectivas motas, todas oficiais e pintadas de acordo com os patrocinadores. O ponto mais alto da experiência é precisamente a vivência do evento. De manhã, ao meio-dia ou à tarde, é possível largar para uma volta rápida e sentir as emoções de forma bastante precisa. Os perigos de correr numa estrada pública espreitam a todo o instante. Basta uma subida a um passeio para provocar um salto e rápido descontrolo da mota ou uma travagem tardia para um embate seco. As acelerações têm que ser cautelosas sob pena de ocorrer uma derrapagem e se perder todo um acumulado de segundos ganhos. As longas rectas sucedem-se a apertadas curvas e zonas onde é maior o peso da travagem. O percurso é globalmente rápido mas é quase impossível fazer uma volta perfeita quando há mais de duas centenas de curvas para fazer, mesmo que muitas delas sejam a fundo.

Outro capitulo bem sucedido neste TT Isle of Man é a fluidez e sensação de velocidade, conjugada com o som da moto, o que resulta numa aceleração sonora e visual realmente incrível, tendo isto particular impacto nas passagens rápidas e curvas intermédias. O processo de travagem não é complicado se correrem com a linha de trajectória, mas todas as curvas apertadas – cotovelos – terão que ser descritos com apoio e segurança. Visualmente estamos perante um jogo bastante aceitável, embora não alcance grandes feitos. Nas consolas o jogo corre a 30 fps. Não sendo um número perfeito é aceitável, produzindo uma sensação de velocidade suficiente. A versão PC, assente no dobro dos fotografas proporcionará claramente outros voos. Ainda assim vislumbram-se quebras pontuais e algum “screen tearing”, pouco perceptível e ocasional é certo mas presente nalgumas secções, sobretudo quando competem com outros pilotos, no formato grelha de partida.

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A reprodução dos 60 km do percurso é muito realista, numa escala de 1:1. Para os novos pilotos o jogo proporciona uma boa base de aprendizagem.

Os modelos motorizados estão impecáveis, mas o factor destruição é quase inexistente e uma desilusão. Uma mota pode rolar no asfalto a grande velocidade e embater numa parede que nada se quebra. A única coisa que podemos mexer é nas configurações de condução, sendo altamente aconselhável jogar com mudanças manuais. De início é apresentado um “tutorial” muito conveniente que depressa nos adapta às singularidades da mota e do estilo de condução mais adequado às nossas capacidades. Claro que sem assistências a experiência é ainda mais agressiva e delicada – com destaque para os movimentos do corpo por via da inclinação através do analógico esquerdo – produzindo mais dificuldades. No extremo pode ser um pouco frustrante manter a mota em pista por muito tempo sem chocar com uma parede ou barreira, mas para evitar esses desaires terão de treinar e conduzir cuidadosamente.

Para um estúdio com pouca experiência nas duas rodas TT Isle Of Man é um bom começo e tem pernas para ir mais longe. Percebe-se que mais produção serviria ainda mais o evento que já é retratado de forma muito fiel. Mas os resultados, sem serem surpreendentes do ponto de vista da condução, marcam sobretudo pela abordagem e aspecto global do evento. O jogo contém conteúdos adicionais, com alguns percursos ficcionais, igualmente inspirados no asfalto de Isle of Man, divididos por secções, sobretudo um modo carreira a solo que nos deixa lutar pelos títulos numa base algo similar à de um moto GP, competindo com outros pilotos e procurando ganhar vantagem, mas não é muito variado. O multiplayer está reservado para a competição em rede, sendo interessante partilhar a prova maior com outros jogadores (até oito jogadores) ou realizando partidas separadamente e em competição pelo melhor tempo (time-trial).

O ponto maior e a proeza digna de registo desta produção do Kylotonn é precisamente a captura do evento em toda a sua magnitude. Está bem conseguido e promove uma lufada de ar fresco quando aceleramos a fundo. A sensação de condução é boa e a fluidez no desempenho gráfico é assinalável. Não há amargo de boca quando completamos os 60 km da prova. A adrenalina cresce a partir da primeira aceleração até aos 300 km/h de velocidade máxima para não nos largar mais. No entanto, assim que nos afastamos do evento que empresta nome ao jogo descobrimos que o jogo não é tão grande em conteúdos alternativos e noutras dimensões parece perder fulgor, mostrando uma imagem mais pálida, particularmente na inteligência artificial menos conseguida. A limitação das categorias motorizadas, ao deixar de fora motas clássicas e de outras eras, bem como “side cars” pode saber a desconsolo. Não obstante, para os mais aficcionados, há motivos para sorrir nesta proposta.

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