Soul: Uma Aventura com Alma – Análise

Há uma emoção complicada de desempacotar, e de definir, provavelmente já sentida (ou que será sentida) por todos. Em inglês a expressão que melhor a define é “sense of wonder”, em português talvez seja deslumbramento, o estado de espírito de quem é tomado por uma imensa admiração por algo. Embora estas palavras até façam algum sentido, parecem-me insuficientes para descrever tudo o que se sente nesse momento.

É igualmente isso que sentimos quando estamos a ver um filme que inesperadamente nos agarra todos os sentidos, que nos adormece o corpo e empurra para dentro do ecrã. Uma sensação cada vez mais rara com a idade e que vai sendo calejada conforme conhecemos e experienciamos mais coisas.

A última vez que senti isso com um filme Pixar foi há mais de 10 anos com o meu muito adorado WALL-E e um ano depois com o Up. Desde então, o único que esteve perto de replicar o feeling foi Coco. Apesar de o ter adorado, não me levou totalmente para outro mundo. Faltou-lhe a coragem para arriscar narrativa e tecnicamente, para pisar a linha que delimita a zona de conforto da Pixar.

É algo que Soul conseguiu e por isso me devolveu o sense of wonder. Grande parte do mérito de Soul, aliás, encontra-se precisamente nessa coragem de fazer diferente dentro da estrutura Pixar.

Além disso, toda a gente está a falar nele. Quando isso acontece, e acaba numa popularidade aparentemente desmedida, tem o efeito contrário em mim. Acabei por subestimá-lo. Nos primeiros minutos do filme estava a sentir que seria uma espécie de School of Rock, que já agora está disponível na Netflix – vejam. E nada de mal com isso, não me importava de ver um School of Rock com a magia Pixar. Mas não seria nada de novo.

E foi assim que Soul me puxou o tapete… Nota: se ainda não viste o trailer, não vejas. Fica aqui só para quem o quiser rever.

Nota #2: Seria injusto para o filme, dificílimo para mim, e um grande spoiler para vocês, tentar analisar/recomendar este filme de uma forma usual. Quando, para tal, Soul exige bem mais que uma visualização e bastante tempo de reflexão. A minha intenção é escrever algo que vos convença a ver o filme, tentando manter o máximo possível por desvendar.

Pois, tarefa complicada.

“Is all this living really worth dying for?” – 22

Por outras palavras, a pergunta que qualquer um de nós já colocou, mesmo que não a tenha verbalizado: valerá a pena viver, sabendo das adversidades que nos esperam e, mais importante, sabendo que vamos morrer? Qual o sentido de fazer parte da vida se a dado momento deixaremos de fazer parte dela?

O quão poético é um filme que se propõe a resolver estas questões – e que o concretiza muito habilmente – ser lançado num dos anos mais adversos da humanidade?

2020 é o ano que queremos esquecer e que ironicamente será para sempre lembrado. É o ano que interrompeu as nossas vidas e nos fez perceber que nada é garantido. Sabemos que a dado momento vamos morrer, no entanto, na maior parte do tempo, encaramos a vida como se fossemos imortais. Este ano lembrou-nos da nossa mortalidade e Soul das razões pelas quais, ainda assim, tudo vale a pena.

Uma conversa sincera com um familiar ou com um amigo, o cheiro e sabor de uma fatia de pizza, sermos ridículos sem nos julgarmos, parar a rotina para ouvir um artista de rua, sentir o vento na cara ou água do mar nos pés descalços, observar os raios de sol que se escapam por entre as folhas de uma árvore… Soul fala destas pequenas coisas que o mundo ultra-preenchido em que vivemos nos escondeu e que a negatividade de 2020 nos fez esquecer por completo.

Soul é a terapia que ninguém pediu, mas que todos precisam.


Continua…

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