Cyberpunk: Edgerunners – Análise

Os bastidores de Cyberpunk 2077, por si só, merecem um anime.

Um anúncio que elevou a expectativa mundial, um lançamento adiado por diversas vezes, transformado-o num dos mais desastrosos lançamentos na história dos videojogos, apresentando imensos problemas de jogabilidade, grafismo e performance, sobretudo nas consolas da geração anterior (PlayStation 4 e Xbox One). Por entre outros problemas (reembolsos, remoções de lojas, etc) os investidores processaram o estúdio, obrigando-o a pagar quase 2 milhões de dólares em indemnizações, por entregar um produto muito diferente do acordado.

Ainda assim, o estúdio não desistiu. A perseverança comprovada do CD Projekt merece muito respeito. Em 2021 emitiu novo comunicado, pedindo desculpas e revelando os planos que tinha para corrigir o jogo. Passou meses a introduzir patchs que atacaram a maior parte dos problemas identificados pelos jogadores, anunciou uma adaptação spinoff anime, uma expansão narrativa e ainda uma atualização relacionada com a dita adaptação.

Desde a estreia do anime no Netflix que o número de jogadores tem vindo a aumentar significativamente, verificando-se a sua eficácia enquanto material promocional, incentivando, talvez, não só jogadores insatisfeitos que abandonaram o jogo quando se encontrava em mau estado, como até novos jogadores inspirados por tudo o que é mostrado em Edgerunners. Mas, então, o que realmente é mostrado em Edgerunners que pode levar a um aumento tão significativo de jogadores? Muita coisa: mais desenvolvimento, mais personagens, mais conceitos, mas, sobretudo, uma recriação aliciante, e alucinante, da Night City (estrutura, geografia, estética, e, tão ou mais importante, tudo aquilo que ela significa e a forma como molda quem nela habita).

Sem entrar em detalhes, no jogo Cyberpunk 2077 acompanhamos a história de V e a sua luta diária contra um misterioso implante cibernético, que ameaça escrever por cima das suas memórias, a personalidade e memórias de uma celebridade morta que apenas V consegue ver. Os dois começam a trabalhar juntos na esperança de separar as duas entidades e salvar a vida do protagonista.

Edgerunners é protagonizado por David Martinez, um jovem brilhante e de muitos talentos…

A adaptação anime não toca de forma alguma nesta narrativa. Edgerunners é protagonizado por David Martinez, um jovem brilhante e de muitos talentos, com especial queda para o entendimento e desenvolvimento tecnológico, que frequenta uma escola acima das possibilidades de uma mãe solteira, especialmente em Night City.

Por certas e determinadas razões, David vê-se obrigado a afastar-se da mãe, ganhando independência mais cedo que o necessário, atirado à brutalidade opressiva de Night City. Quanto mais débito acumula, mais David percebe que a cidade hiper-capitalista o empurra para caminhos menos lícitos, obrigando-o a transformar-se num Edgerunner (fica para descobrires no anime).

Considerando que se trata de uma adaptação de um videojogo, a liberdade narrativa está delimitada pelos conceitos neste criados e limitada pelas direções que o estúdio responsável pelo jogo forneceu certamente. Ainda assim, enquanto adaptação de um videojogo, a história de Edgerunners tem uma abordagem inteligente. Simples e previsível, é certo, mas, inteligente. Edgerunners não poderia ser um Ghost in the Shell (filme de 1995) nem um Akira (nem podem esperar que o seja, caso estejam com essa expectativa). Perderia valor enquanto material promocional de um videojogo que precisa desesperadamente que os jogadores voltem.

Sejamos realistas, Ghost in The Shell e Akira, apesar de serem dois dos melhores exemplares que o formato anime tem para oferecer no género cyberpunk, são títulos de culto. Não são blockbusters. Não existe um vasto público a ver e apreciá-los. São anime para os fãs do cyberpunk puro. Dentro desta pequena fatia, apenas uma fatia ainda menor é adepta de videojogos. Portanto, não seria a criar cyberpunk puro que iriam transformar Edgerunners num bom material promocional.

Seria um anime galardoado? Sim. Seria um anime respeitado, reconhecido, com durabilidade e pedigree de clássico instantâneo? Muito provavelmente. Contudo, não seria aquilo que o Studio Trigger foi pago para fazer: uma adaptação anime capaz de servir como material de acompanhamento e expansão do universo apresentado no videojogo e que, ao mesmo tempo, incentiva o maior número possível de público a regressar ao jogo ou experienciá-lo pela primeira vez. E como é que se faz isso? Criando um blockbuster com o cyberpunk possível. Criando algo que inclua elementos do jogo, agradando aos fãs, servindo ao mesmo tempo de guia turístico pela Night City, convertendo assim potenciais jogadores.

Como fã do género Cyberpunk, enfrentarei sempre este dilema: vou comer e gostar sempre de tudo o que aborde minimamente bem o assunto; sentindo, ao mesmo tempo, que se tratará de uma oportunidade desperdiçada, não se transformando em mais um ponto de referência para o género (algo que este carece atualmente). Por um lado, diverti-me imenso com o anime, recomendo-o a qualquer fã que, tal como eu, está constantemente faminto por mais Cyberpunk, que aceita as coisas incompletas, sem nunca deixar de lhe reconhecer as qualidades. Por outro lado, sinto-o inevitavelmente como uma oportunidade desperdiçada para ir mais além.

Cyberpunk é filosofia. Cyberpunk é filosofar sobre a sociedade tecnológica, sobre o casamento tóxico, mas indispensável, entre a humanidade e a tecnologia; sobre a simbiose literal da tecnologia com o orgânico e vice-versa, as suas consequências, etc. Edgerunners toca levemente em muitos destes assuntos, sobretudo na corrupção das megacorporações e do capitalismo extremista, dois temas que começam em primeiro plano e que dão lugar ao vício do transumanismo e as potenciais consequências nefastas que isso traz para o cérebro de quem cai no vício, de quem não consegue parar de pensar no próximo upgrade de inteligência, velocidade, força, ou longevidade.

Não vou adiantar de que forma é abordado, nem que personagens são utilizadas para o abordar. Edgerunners apelida a metafórica overdose de psicose-cibernética, ou seja, um estado em que o cérebro perde a capacidade de controlar toda a tecnologia implementada no corpo, perdendo por completo a consciência, transformando-se numa espécie de inteligência artificial descontrolada e altamente perigosa para a sociedade.

Evidentemente, a psicose-cibernética ocupa aqui um espaço literal, que pode efetivamente acontecer num futuro em que seja possível fundir tecnologia no nosso corpo, com alterações desta magnitude, mas também pode funcionar como metáfora para o que já acontece, por exemplo, com os smartphones, uma tecnologia que está constantemente a apenas um braço de distância de nós, que tem tanto de bom como de nefasto para a nossa saúde física e mental.

Tem temáticas, e nestas até tem alguma profundidade, mas é insuficiente para tudo aquilo que toca, e para aquilo que o género exige.

A falta de profundidade temática, como aliás, todos os problemas da série (como por exemplo as personagens pouco caracterizadas e nada desenvolvidas), é quase sempre colmatada pelo estúdio de animação perfeito para o trabalho: Studio Trigger. No geral, e não tendo um bom escritor, o Trigger garante uma verdade incondicional: estilo em vez de substância. E com Hiroyuki Imaishi (Kill la Kill, Tengen Toppa Gurren Lagann) ao volante da produção, a estilização máxima estava mais do que garantida. Pouco ou nada é subtil, nem pode ser. São raros os momentos em que se respira, se reflecte, até porque, caso ocorra, consegue-se sentir o vazio da narrativa e começamos a pensar no quão previsível tudo é. A arte e os efeitos carregam a produção, mas mesmo isso vai ficando cada vez mais preguiçoso conforme nos aproximamos do fim, especialmente os últimos dois episódios onde abundam modelos 3D pobres e coreografias de batalha onde pouco ou nada se percebe.

Percalços à parte, o Studio Trigger monstrou-se à altura do desafio, preenchendo toda a checklist (e mais alguma) que pedi no Trigger – O estúdio responsável por Cyberpunk Edgerunners: Representação credível da tecnologia futurista ✓; Designs de personagens distintos ✓; Palete de cores característica ✓ e ambiente neon ✓, entre outras coisas como a saturação de cor e planos, dinamismo de realização e animação.

 

Quem não jogou pode ver?

Sim. Eu ainda não joguei. Vi, gostei e diverti-me imenso. Quem nunca jogou e vir o anime, se sentir o que senti, vai provavelmente querer jogar. Quem já jogou e vir o anime, vai ter um outro entendimento de toda a narrativa, conceitos e mundo no qual tudo se passa.

Como já disse, Cyberpunk: Edgerunners não é uma adaptação anime da história do jogo. Nem sequer é um spin-off no sentido no qual mais estamos habituados, naquele em que uma personagem secundária se transforma em protagonista de uma nova história. Cyberpunk: Edgerunners deverá antes ser olhado como um complemento à narrativa principal. Uma outra história e outras vidas, tocadas e tingidas pela Night City, mas numa outra região (estou, por outro lado, bastante curioso como os eventos de Edgerunners irão afetar o jogo).

O sentimento será mais ou menos o mesmo. Quem jogou, terá no anime a oportunidade de conhecer mais sobre aquele mundo, a partir da vida de outras personagens. Quem viu o anime, terá no jogo a oportunidade de mergulhar mais a fundo em tudo o que viu no anime. A única vantagem que existe para quem já jogou é conhecer todos os conceitos, locais, temas e etc.

O anime arranca a todo o gás e não perde nem um segundo em explicações. Se não sabes quem são os Arasaka, o que é a Arasaka Tower e o que esta representa, bem como as restantes gigantes corporações de Night City, a estrutura e segmentação da sociedade, a forma como funciona a economia, o que são Fixers, Eddies, Corpo ou Choom, bem como todo o calão característico de Night City, prepara-te, pois nada disso é explicado em Edgerunners. Com o passar dos episódios e conforme tens contacto com todos estes termos e conceitos, vais percebendo e apanhando as coisas.

Não me pareceu de todo crucial para desfrutar da série, mas quem já souber poderá desfrutar ainda mais sem estar a pensar no que eles querem dizer.

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