SIGNALIS – Análise

A estranha sensação de algo ter sido especificamente desenhado para nós, sentir que determinado videojogo está a comunicar diretamente connosco, a falar a nossa linguagem, é uma sensação rara. Quando acontece, é como aquela expressão inglesa: it ticks all the boxes.

Foi precisamente isso que senti quando vi o teaser de SIGNALIS. Levou-me de imediato para um tempo mais simples. Um tempo sem abundância, sem acessos facilitados à informação; tudo coisas que alimentavam a imaginação do que poderia ser a experiência de jogar. Levou-me para um tempo onde jogar significava apenas jogar aquele jogo, sem pensar nos títulos que ficam por jogar; sem pensar no quão rápido teria de o acabar para poder passar ao seguinte… e ao seguinte… e ao seguinte…

(…) sentir que um videojogo está a comunicar diretamente connosco (…) é uma sensação rara.

E assim que comecei a jogar, confirmaram-se duas coisas: SIGNALIS foi feito para mim (obrigado estúdio rose-engine) e foi capaz de roubar toda a minha atenção – não pensei em mais nada e não me importei quanto tempo passava nele (pelo contrário, as horas voaram). Quando sentimos que algo foi desenvolvido a pensar nos nossos gostos, só pode significar uma coisa: as pessoas que o desenvolveram têm paixões muito aproximadas das nossas. Certamente têm um conjunto de experiências, vivências e gostos que juntos, dão origem a esta experiência que tem tanto de pessoal como de coletivo, independentemente do idioma ou país.

 

Apesar da Game Boy ter sido o meu primeiro amor, foi a PlayStation 1 que ao longo da década de 90 me introduziu e fez apaixonar por diversos géneros, que ficarão para sempre agarrados àquela estética muito específica de quem dava os primeiros passos no universo virtual a 3 dimensões. O primeiro contacto com títulos como Metal Gear Solid e Resident Evil moldaram invariavelmente os meus gostos em videojogos, transformando-me num fiel fã de stealth games e survival horrors.

Ora, SIGNALIS consegue ambos, com distinção diga-se, e fá-lo mergulhado em claras inspirações anime (estéticas e temáticas). Portanto, um híbrido survival horror/stealth game, com estética anime e com gráficos e mecânicas de jogo que, apesar de aprimorados, mimetizam a era da PlayStation 1? Ah! E a isto ainda se junta uma premissa inspirada no filme Alien, temáticas de ficção-científica presentes em Blade Runner, Ghost in the Shell, Serial Experiments Lain e cyberpunk clássico em geral, elementos de narrativas com zombies e ainda tecnologia retro-futurista?

Têm a minha atenção, onde é que assino?

Mal sabia eu que estava, na verdade, a assinar para uma viagem de uma melancolia tal, que ficará para sempre registada na minha memória. E, por falar em memórias, é através de Elster, uma Replika (inteligência artificial humanoide), que vamos caminhando pelo mundo de SIGNALIS.

Elster acorda sozinha, com memória fragmentada, naquilo que parece ser uma nave espacial que acabara de se despenhar. Conforme explora os seus corredores gélidos e enferrujados, descobre alguns documentos que a ajudam a perceber que está algures nas profundezas do espaço, num planeta longínquo.

O início do jogo é uma espécie de reencontro com um bom velho amigo…

Neste futuro distópico, a humanidade procura desenfreadamente por mais planetas com vida, com potencial de serem conquistados e governados, fazendo uso das Replikas para o primeiro contacto. Elster, no entanto, é motivada por algo superior à missão para a qual foi programada: a procura por uma jovem humana com a qual parece ter uma ligação muito especial.

Alguma exploração inicial e a resolução de um primeiro puzzle leva-nos a sair da nave e a entrar num edifício de enormes dimensões, onde decorre a maior parte do jogo. Toda a sua imponente estrutura, inundada por um ambiente inóspito e claustrofóbico, fez-me sentir como se estivesse dentro de algo saído das páginas de George Orwell, com câmaras a acompanhar cada um dos nossos passos (desde o 1984 que não temia tanto a presença do Big Brother).

O início do jogo é uma espécie de reencontro com um bom velho amigo, com quem se conversa sem qualquer dificuldade ou cerimónia, como se nenhum tempo tivesse passado. Sabes exatamente o que fazer e como fazer. A animação da locomoção da personagem rapidamente me fez lembrar a experiência que tive com a Jill Valentine, e mais tarde com o Leon, em Resident Evil, sendo inevitavelmente absorvido pela sensação altiva de: já sobrevivi a survivals horror nos bons velhos tempos, mostra-me lá o que tens para dar.

E SIGNALIS tem mesmo muito para dar. Não necessariamente a nível de desafio de combate (é secundário), mas noutros aspetos, e muito mais do que aquilo que possas imaginar ou supor através do material promocional. Aliás, ainda não consegui entender como um estúdio composto por apenas duas pessoas conseguiu desenvolver um título com mais de dez horas de conteúdo, animações e cutscenes incríveis, estética imersiva, um level design intrincado, mas estranhamente fluido, funcional e aliciante, uma história com várias camadas, uma sonoplastia deliciosa e apenas falhar numa coisinha ou outra.

Um dos elementos mais importantes para o survival horror funcionar é conseguir atingir uma sinergia tão perfeita quanto possível entre level design, escassez de recursos, enigmas->resolução->recompensa, sensação de incerteza (não saber quando é o próximo save point, quando teremos munição ou vida) e, em simultâneo, estabelecer algo que motive o jogador a investir tempo em todo este sistema.

A nossa motivação é partilhada com Elster: exploramos continuadamente cada recanto, na esperança de encontrar mais pistas que nos levem até à jovem rapariga. Embora o pouco frequente desenvolvimento narrativo nos faça esquecer aquilo que nos motiva a explorar o labiríntico edifício, preenchido de perigos inesperados e enigmas progressivamente mais complexos.

No entanto, aquilo que poderia ser um entrave, transforma-se numa virtude, sublinhando a mestria com que conseguiram implementar o ciclo (que, aliás, tem um valor de rejogabilidade muito interessante, intensificado pelo final). Somos primeiramente motivados pela história, pelo meio esquecemos a história e somos simplesmente motivados pelas aliciantes mecânicas de jogo, e, quando menos esperamos, somos presenteados com mais um pedaço de história que nos intensifica a vontade de querer explorar mais e saber mais.

E acredita, tenho vontade de te dizer muito sobre tudo. Mas escrevo pouco e contido, na esperança de que seja suficiente para te convencer a jogar, sem te estragar seja o que for da experiência.

 

SIGNALIS inspira-se nos grandes, nos melhores e nos clássicos.

Tem tudo o que se pode pedir de um bom survival horror: escassez e gestão minuciosa de recursos, enigmas capazes de vos fazer agarrar na caneta e no papel para serem resolvidos (bem como para apontarem informações pertinentes que serão apenas usadas mais à frente); diversidade de armas e recursos de combate, monitorização detalhada do estado de saúde, documentação espalhada por todos os recantos, que ajuda a informar e a construir o mundo onde te encontras.

SIGNALIS consegue encontrar uma identidade própria em tudo o que toca…

Contudo, não me parece que seja tudo isto que o torna especial. Sinto que, pelo contrário, consegue algo ainda maior: ser especial apesar de tudo isso. Pelo meio do tributo profundamente inspirado, SIGNALIS consegue encontrar uma identidade própria em tudo o que toca, desde a estética, ao som, ao gameplay e até à história e, sobretudo, como todos estes aspetos se relacionam para transmitir emoções sem esforço aparente.

Enquanto explorei os nada convidativos, e contraditoriamente imersivos, níveis de SIGNALIS, fui-me apercebendo de como o clássico e familiar é polvilhado com toques modernos e refinados, de como toda a familiaridade e o facto de naturalmente conseguir jogar, abriu espaço para que entrasse na obra de arte que está por detrás das inspirações e referências.

 

Existem pequenos pormenores que impedem SIGNALIS de ser perfeito: falta de variedade de inimigos, mecânica de disparo imprecisa, narrativa que devia aparecer com mais frequência ao longo da exploração. Todavia, todas as suas qualidades reduzem estes preciosismos a pequenos defeitos que quase não merecem ser mencionados.

Há muito mais por dizer sobre SIGNALIS, mas não vos quero estragar mais do que esta leitura já o possa fazer. Resta-me dizer que é daqueles que deixa buraco, que se gruda à cabeça. Daqueles que te deixa em ruminação intelectual e emocional durante dias, semanas, meses, anos… E, que depois, te dão vontade de o revisitar, com mais experiência, conhecimento e capacidade para reconhecer e interpretar todo o subtexto.

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