Às Cegas, do Netflix – Análise

Birdbox, ou Às Cegas em Portugal, é o título do novo filme original Netflix que já conquistou o público de todo o mundo, de acordo com os dados avançados pelo serviço de transmissão, 45 milhões de pessoas viram a adaptação do romance de estreia de Josh Malerman, publicado em Portugal pela Topseller (2017), apenas durante a primeira semana.

A história de Birdbox podia ser igual a tantas outras. O apocalipse, o fim da sociedade como a conhecemos, um tema que já foi explorado imensas vezes na literatura e na sétima arte. Porém, o que Malerman trouxe é diferente, no sentido em que o grande inimigo está lá, mas só atinge aqueles que o veem. Relembrando a lenda da Medusa, o monstro que transformava quem a fitasse em pedra, em Às Cegas há lugar ao suicídio em massa. Qual o aspeto destas criaturas que levam o ser humano a acabar com a própria vida só por olharem? “What the hell is that?”; “They are beautiful!”; “They don’t look that bad…” Porém, o resultado atinge antes que algo mais possa ser dito, a curiosidade mantém-se e o medo do desconhecido vai crescendo ao longo do enredo. Afinal, para perder esta guerra, basta um olhar.

Sem visão, o mundo é muito maior. A grande maioria das pessoas move-se orientada pelo som e pela visão. Estes dois sentidos em sintonia permitem que estejamos atentos ao perigo e que possamos deslocar-nos com relativa rapidez entre os espaços. A temática já havia sido explorada anteriormente. José Saramago escreveu o livro “O ensaio sobre a cegueira”, adaptado ao grande ecrã em 2008 e protagonizado por Julianne Moore e Mark Rufallo. Contudo, é importante perceber que existe uma grande diferença entre não conseguir ver e não poder olhar. O instinto humano compele-nos a usar essa faculdade caso nos sintamos ameaçados. Daí que a teia de acontecimentos de Birdbox nos leve a um tal estado de ansiedade, que torna impossível que não nos tentemos colocar na posição dos sobreviventes. Devido a esta propulsão de imaginar se seríamos capazes de sobreviver no apocalipse de Birdbox, que atingiu primeiro os leitores e agora os espetadores, a Netflix emitiu um comunicado a pedir para as pessoas serem conscientes e cautelosas, para não se magoarem ao tentar concretizar o desafio Birdbox, proposto por fãs mais arrojados.

Birdbox, chegou ao ecrã protagonizado por Sandra Bullock. A este nome sonante, da atriz galardoada com um Oscar em 2010 pela sua prestação em The Blind Side, junta-se John Malkovich, que também dispensa apresentações.

Sandra Bullock é Malorie, a protagonista desta história apocalíptica onde olhar é sentença de morte. É uma personagem pouco emotiva, que se vê de mãos dadas com uma gravidez indesejada. O seu tato é duro e as suas ações são pragmáticas. Bullock coloca a máscara de força de Malorie na perfeição, levando-nos a crer que se há alguém capaz de sobreviver neste novo mundo, é ela. Para Malorie, não há lugar para fraqueza. Dispensando ajuda e querendo ser parte ativa na sobrevivência do grupo, apesar da sua condição, a protagonista conquista o seu lugar de destaque neste filme.

No livro, somos Malorie, toda a ação é relatada pela sua voz, pelo que ela sente, pelo que ouve e pelo que ela, de vez em quando, vê. É muito interessante perceber que o livro e o filme transmitem uma forma de terror diferente. O primeiro é mais sugestivo. A protagonista descreve o que ouve, cheira, e o que sente através do tato. Apercebemo-nos do esforço hercúleo para se fazer valer dos outros sentidos. Quando o perigo se aproxima, o leitor também não vê o que está a acontecer, o que o leva a sofrer com ela. No filme, apesar de as criaturas serem ocultadas, assistimos a todos os ramos que lhe embatem no rosto, sabemos onde é que tropeçou e podemos prever o que acontecerá se continuar a correr naquela direção. Aqui, sofremos por ela.

A primeira parte do filme pouco destoa com a obra literária que lhe deu origem.

A primeira parte do filme pouco destoa com a obra literária que lhe deu origem. Até cerca de metade, são poucos os momentos que se destacam pela diferença, sendo alguns apenas ajustes necessários à concretização da história no ecrã. Malorie está num barco com duas crianças de olhos vendados. Só a imagem é arrepiante. É de congratular o desempenho de Vivien Lyra Blair, Girl, e de Julian Edwards, Boy, que vestem na perfeição o papel das crianças especiais que são, uma vez que nasceram naquele mundo e que nunca na sua curta existência conheceram outra realidade senão a de manter os olhos vendados no exterior. São personagens que espelham a inocência e que transmitem ternura, mas que têm o objetivo de, sobretudo, elevar ao limite o instinto de proteção de Malorie. O impacto das situações pelo qual atravessam, aumenta em tensão ao ver aqueles dois pequenos seres envolvidos. Foi uma boa jogada do autor, que foi perfeitamente concretizada na adaptação.

Sarah Paulson, já conhecida pela sua participação regular em American Horror Story, tem uma participação curta, assim como Machine Gun Kelly , que tinha sido um nome que suscitara alguma curiosidade quando anunciado. Ao lado de Sandra Bullock, talvez tenha sido Trevante Rhodes quem ganhou algum destaque. O ator que participou em Moonlight dá vida a Tom, a única personagem, para além das crianças, que cria laços com Malorie.

[As] inovações do filme não danificaram a história original, tendo-a deixado um pouco mais rica.

A presença de Tom e o background militar que lhe é atribuído no filme acaba por ser relevante e não apenas uma característica. Isto porque, no momento que seria o único clímax do livro, o filme aposta numa direção diferente, contrariando uma decisão que o autor tomou. Esta opção permitiu que o filme se estendesse por mais alguns minutos e que se explorasse um lado mais emotivo de Malorie, que ficou perdido no livro. Além disso, tendo esta alteração permitido entrar numa nova fase completa e com conteúdo, somos direcionados para um segundo e para um terceiro momento de tensão que são totalmente alheios à obra literária. Neste ponto, regressamos ao que o livro dita e o final mantém-se. Estas inovações do filme não danificaram a história original, tendo-a deixado um pouco mais rica. Contudo, é impossível não perceber que, ao contrariar a decisão do autor naquele momento de clímax, a Malorie de Bullock perdeu alguma da sua força, em comparação com a sua personagem literária.

Josh Malerman também deixou no ar algumas questões, que são mais exploradas no filme, no que diz respeito à loucura e à identidade das criaturas. Continua a não haver uma resposta firme e completa, mas há lugar a um maior esforço para apontar uma explicação.

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