The Last of Us Part 2 — Análise

Quando desafiado pela hipótese de explorar um novo setting, com personagens diferentes daquelas que conhecemos em 2013, Neil Druckmann considerou a ideia uma “saída covarde”. Claro que podia funcionar, mantinha a santidade apregoada por uma boa parte dos fãs em relação ao final do primeiro jogo, mas perdia-se muito pelo caminho. Para isso, o diretor criativo de The Last of U Parte II preferia desenvolver uma nova propriedade intelectual.

De certeza que já se questionaram sobre como podia a jornada continuar, como seria a vida depois da mentira, até quando Ellie acetaria a justificação de Joel e que novo propósito encontraria. Cinco anos depois dos eventos do primeiro jogo, parte de uma comunidade que recebeu a dupla de braços abertos e onde existe conforto, alimentos, amizade e amor, o desafio está menos na sobrevivência e mais nas relações, exacerbadas pela abrupta fase de afirmação de identidade e descoberta, típicas da adolescência.

chega a ser difícil perceber como um título tão bonito (…) corre numa PlayStation 4.

The Last of Us Parte II abre assim numa renovada normalidade, no seio da comunidade de Jackson, onde todos têm um lugar, em nome do bem comum. Desde cedo percebemos o objetivo da Naughty Dog em contar a história de forma alternada e introduzir diferentes personagens, saltando entre tempos e locais, com Ellie ao centro da problemática. Sabíamos simultaneamente que apesar de todos os cuidados e defesas montadas pelas pessoas de Jackson, o ato incidente era mais ou menos inevitável para colocar os protagonistas em movimento, incendiar-lhes o desejo de vingança que os materiais promocionais prometiam. Ainda assim, nada nos podia preparar para o que estava para vir.

Na sua gênese, a sequela é mais uma vez uma história sobre a natureza humana, recomeça com o paternalismo e a capacidade de amar incondicionalmente, virando a moeda do avesso para esmiuçar também o nosso potencial para odiar, justificar ações sem a justa ponderação, realçando que são os sentimentos, mais do que a razão, que nos move.

A melhor parte neste caso é como a Naughty Dog aproveita as capacidades únicas dos videojogos não só para dar dimensão emocional aos personagens, se eu o conheço sinto por ele, mais ainda quando o controlo, mas também para estimular conflito e impôr um sentimento dicotómico entre o eu jogador e o eu pessoa atrás do comando. Por tendência comportamo-nos como o primeiro, está programado em nós, mas raramente me foi tão difícil premir o botão.

impõe um sentimento dicotómico entre o eu jogador e o eu pessoa atrás do comando.

Essa capacidade está diretamente ligada à forma inteligente, única diria nos jogos de ação, da Naughty Dog tratar a exposição, a solução de transmitir informações sobre a história, seja contextualização ou o lançamento de sementes para um acontecimento futuro, de modo passivo, via texto ou narração, por exemplo. Isso contrasta com a própria natureza dos videojogos, que são um meio interativo e têm uma forma muito própria de colocar-nos no lugar do outro. Os jogos do estúdio especializaram-se no método de transmitir a narrativa de modo subtil, em movimento, enquanto os personagens conversam e sem retirar o controlo ao jogador.

A Parte II continua nesse registo, mas dá um passo de gigante a nível narrativo, colocando-nos do lado oposto da barricada. Não me vou adiantar muito sobre este ponto, garantir apenas a existência de reviravoltas, surpresas e atos questionáveis, mesmo para um jogador. O descaramento narrativo do jogo vai deixar-vos várias vezes numa posição desconfortável, algo que não é de todo comum aos videojogos, mas que demonstra sofisticação e uma maturidade assinalável, num meio cuja dimensão devia servir de escudo aos ditadores da cultura. Está mais do que na hora.

Os acontecimentos e a temática para onde a história se metamorfoseia vai irritar muita gente, a arte sempre teve e sempre terá o condão de ferir suscetibilidades, ainda bem desde que isso dê azo a um debate de ideias livre e plural. Carrega uma mensagem sobre a qual se vai escrever imenso e não só é extremamente violento, bastante mais do que o anterior, como se apoia num conjunto de figuras dimensionais, que como o mundo real, são mistas. Isso permite-lhe a inclusão de momentos e grupos que refletem visões antagónicas sobre sociedade e temas sensíveis como a sexualidade, família, trauma ou a religião. Recordo-me de uma lição sobre o que é uma sinagoga, o Tora, ou ainda que de uma perspectiva agnóstica, o que pode representar o ato de rezar.


Continua…

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