Tell Me Why – Análise

Em 2015, já depois de se ter apresentado ao mundo com o peculiar Remember Me, o estúdio francês Dontnod arriscou na criação de Life is Strange, um jogo em formato episódico, uma decisão que provou dar frutos, oferecendo-nos uma história cativante aliada a um mundo real e vivo, que convida os jogadores a embrenhar-se nele e nas suas personagens.

Agora, em 2020, o estúdio volta a arriscar no formato com Tell Me Why e com a representação de um personagem transgénero enquanto uma das personagens principais, algo que nenhuma produtora de grande dimensão fez até hoje. É muitas vezes um tópico sensível que acaba por ser simplificado e diluído, algo que não acontece em Tell Me Why com Tyler, um homem transgénero e Alison Ronan, a sua irmã gémea – tudo graças à profundidade dada aos personagens e ao cuidado que a Dontnod teve na sua criação. Em nenhuma parte da história Tyler pode ser resumido ao seu género, afinal, isso é apenas uma pequena peça do puzzle que o define, no meio de tantas outras que compõem esta história.

E tal como num puzzle, começamos por compor o plano de fundo de Tell Me Why, deixando os pormenores para depois. A história arranca com a reunião dos irmãos Ronan na sua cidade natal do Alaska, Delos Crossing, uma pequena vila à beira-rio, onde se reencontram depois de estarem separados durante 10 anos.

Embora não me tenham deixado de queixo caído, os gráficos do jogo são respeitáveis, dando vida aos cenários exteriores, quase sempre tingidos de branco e especialmente detalhados nos interiores, onde narram visualmente a história dos habitantes de Delos, contrastando o frio do Alaska com o calor humano dos seus habitantes. Há muito para explorar e cada fotografia, bilhete, brinquedo e postal esconde mais uma história para descobrir.

não me recordo da última vez que precisei de tanto tempo para tomar uma decisão…

Com as peças de fundo montadas, passamos aos detalhes e é aqui que a narrativa de Tell Me Why brilha: na exploração do passado de Tyler e Allison e na interpretação que cada um tem dele. Com um toque sobrenatural, recorremos muitas vezes à ligação única dos gémeos, que lhes permite comunicar telepaticamente, materializar e partilhar memórias. À medida que exploramos a cidade de Delos somos confrontados com as suas memórias, muitas vezes dolorosas, cabendo-nos assumir as rédeas da narrativa, moldando as peças do puzzle que é o passado dos gémeos.

Aqui reside a beleza da história, a forma como se altera em função da perspetiva de cada um, do seu relacionamento e de como se vêem um ao outro. Ao longo dos três capítulos, aproximam-se e afastam-se à medida que vão desvendando o mistério do seu passado, encarando ou não, os seus traumas.

E por falar em puzzles, há uns quantos para resolver ao longo da aventura, entre outros minijogos que exigem pressionar botões na altura certa. Se por um lado esses desafios pouco ou nada acrescentam ao jogo, os puzzles encorajam os jogadores a mergulhar ainda mais fundo nas histórias do mundo de Tell Me Why, sendo simultaneamente a chave e a recompensa da sua resolução.

Obviamente não posso, nem quero, entrar em detalhes sobre a história para evitar estragar as várias surpresas que o jogo reserva. Posso dizer que começa devagar, em lume brando, à medida que vamos colocando as peças no tabuleiro, que conhecemos os habitantes de Delos e que descobrimos a forma como os gémeos lidaram com o evento traumático que lhes definiu a infância. Acaba com um cliffhanger, deixando-me impaciente para explorar o episódio seguinte.

Com acesso ao jogo completo, não necessitei de esperar uma semana entre os episódios e talvez essa tenha sido a razão pela qual senti que o arranque tanto do segundo como do terceiro, tenham um tom e ritmo desconectado do anterior, dando a sensação que passou mais tempo no jogo que era suposto – cerca de uma noite.

No terceiro capítulo chega a conclusão da história, o culminar de todas as decisões que tomara ao longo do jogo, o momento em que olho o puzzle que montei, onde apenas falta uma peça e cabe-me a mim dar-lhe forma, de acordo com todas as outras que fui colecionando, criadas a partir de todos os postais, fotografias, emails, memórias e conversas que encontrei em Tell Me Why.

Foi um autêntico murro no estômago e não me recordo da última vez que precisei de tanto tempo para tomar uma decisão num videojogo, tudo porque a minha decisão se prendeu com personagens com as quais senti uma ligação e me identifiquei em vários momentos. Escolhi um final pacífico e catártico, com a certeza de que outros jogadores escreverão uma história diferente da minha.

Ficou a pergunta no ar, que imagem mostraria o meu puzzle, caso eu tivesse escolhido outra peça?

Os estúdios Dontnod voltam a criar uma excelente narrativa, que aborda de forma séria e sem medo temas profundos que ainda são um desafio encarar, construindo um elenco de personagens verosímeis e com os quais nos podemos identificar, em mais uma prova de que os videojogos podem ser uma ferramenta para a sensibilização, colocando-nos nos papéis de outros. Numa cidade recheada de mistérios por resolver, somos recompensados por revirar todos os recantos, desvendando a história dos gémeos Ronan e da cidade de Delos.

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