Crunchyroll: O que é, como cresceu e o que significa um negócio com a Sony

No passado dia 30 de Outubro, o Nikkei (site especializado em notícias sobre economia, indústria e mercados japoneses) reportou que a Sony “entrou na fase final das negociações para a aquisição da famosa plataforma de streaming de anime, Crunchyroll”.

A eventualidade – cada vez mais provável – da transação ser concluída, traz com ela muitas questões. Qual o impacto nas marcas das companhias, por exemplo na PlayStation (Sony) e na Crunchyroll Originals (Crunchyroll)? Que influência terá nas indústrias de entretenimento das quais fazem parte? E, claro, o que poderá significar para o consumidor?

Neste artigo tento o exercício de antever todas as possibilidades, positivas e negativas. Mas, antes de mergulhar nestes prós e contras, talvez seja melhor dar a conhecer o percurso da Crunchyroll.

O que é a Crunchyroll?

É uma plataforma online, especializada na transmissão e distribuição de anime, manga, e de outros conteúdos audiovisuais produzidos na Ásia (por exemplo: Doramas). Actualmente, o serviço também produz videojogos sob o selo Crunchyroll Games e anime sob Crunchyroll Originals.

Para além destes conteúdos, a marca desenvolve outras iniciativas como o The Anime Awards, evento anual que pretende premiar os melhores anime e o Crunchyroll Expo, um evento também anual, que serve para promover a plataforma e toda a indústria anime através de convidados (realizadores, produtores, youtubers, escritores, críticos) e onde são divulgadas novidades dos próximos títulos a estrear.

A plataforma encontra-se no auge dos seus 14 anos de existência, totalizando atualmente cerca de 70 milhões de membros, dos quais 3 milhões se encontram subscritos ao serviço premium.

Mas, como terá chegado até aqui?

O Crescimento da Crunchyroll ao longo do tempo

Fundada em 2006 por um grupo de estudantes da Universidade de Berkeley, a Crunchyroll deu os primeiros passos no universo do streaming ao disponibilizar anime de forma ilegal. Encorajava, inclusive, os próprios utilizadores a legendar e a fazer o upload de conteúdo temático relacionado com o site, sem qualquer licença ou direitos de autor.

De certo modo, durante alguns anos, a plataforma mimetizou o funcionamento do YouTube, até na forma como alertava os utilizadores para evitarem conteúdos protegidos por direitos de autor. No entanto, e tal como o YouTube, foi através desta metodologia que se escudou durante muitos anos de problemas legais e através da qual conseguiu crescer o suficiente para atrair investidores e parceiros dispostos a auxiliar a marca a transformar-se numa plataforma legal.

Existem muitos pontos importantes na vida da plataforma. Na cronologia abaixo, no entanto, tentei filtrar apenas os que considero que realmente valem a pena sublinhar, tendo em conta o nível de impacto no seu desenvolvimento:

  • 2008: Recebe o primeiro grande investimento, com o qual deu os primeiros passos rumo à legalização do serviço. Continuava a permitir o upload ilegal de conteúdos;
  • 2009: Forma parceria com a TV Tokyo, canal televisivo japonês, onde se terá comprometido a remover todo o conteúdo ilegal, permitindo-lhe a transmissão de episódios de Naruto Shippuden;
  • 2010: Adquire os direitos de distribuição, em formato físico, da antologia 5 Centimeters Per Second de Makoto Shinkai.
  • 2013: Cria parceria com a Kodansha (uma das maiores editoras de manga), com o objetivo de distribuir títulos populares como Attack on Titan e Fairy Tail;
  • 2013 a 2016: Neste período de tempo a Crunchyroll foi adquirida de diferentes formas, por diferentes grupos. A que me parece mais importante destacar é a aquisição por parte da Otter Media, atual acionista maioritária, porque é a companhia filha da poderosa multi-nacional Warner Media (a mesma que é mãe da DC Entertainment, da Cartoon Network, da Adult Swim, da CNN, e, mais importante para este artigo, é a companhia mãe da HBO, da qual falarei mais à frente);
  • 2016: Cria mais uma importante aliança, desta vez com a Kadokawa (editora de manga e videojogos como por exemplo de Neon Genesis Evangelion), com a qual co-financia a produção de anime;
  • 2016: Anuncia intenções de entrar no universo da dobragem e forma uma muito improvável aliança com a Funimation (empresa semelhante à Crunchyroll, mas que disponibiliza anime exclusivamente dobrado). A intenção era disponibilizar aos subscritores de cada plataforma simultaneamente conteúdos dobrados e legendados, bem como em títulos anime que a Crunchyroll produzisse a dobragem;
  • 2017: Atinge o primeiro milhão de subscritores ao serviço premium. Começa a distribuir anime dentro da Steam;
  • 2018: Fim da parceria Crunchyroll+Funimation. A Sony Pictures Television adquire a Funimation e a AT&T compra a Otter Media, adquirindo por acréscimo a Crunchyroll, interrompendo prematuramente a aliança entre as duas companhias;
  • 2018: A Otter Media, acionista maioritária, à qual faltava apenas os 20% da Crunchyroll que estavam distribuídos pela TV Tokyo e outros investidores, adquire a Crunchyroll a 100%. A plataforma torna-se oficialmente filha da Warner Bros.;
  • 2019: Alia-se a mais uma editora, desta vez a Viz Media (responsável por licenciar no ocidente os títulos da Shueisha, como por exemplo Dragon Ball e Demon Slayer), acabando por, ainda neste ano, se tornar acionista maioritária da Viz Media Europe Group;
  • 2019: A Crunchyroll faz uma das jogadas mais interessantes em todo o seu tempo de vida e alia-se à WEBTOON, portal de banda de desenha coreana, para produzir adaptações anime de títulos disponíveis no portal, como por exemplo Tower of God, The God of High School e Noblesse;
  • 2020: Surgem os primeiros rumores de que a Sony estaria interessada em comprar a Crunchyroll à WarnerMedia por aproximadamente 1.3 mil milhões de euros…

Tudo isto leva-nos a Outubro de 2020, mês que entrega a notícia da Sony se encontrar nas negociações finais que poderão resultar na aquisição total da Crunchyroll, mas por uma quantia inferior à inicialmente divulgada: 822 milhões de euros.

Antes de avançar para a antevisão, quero então falar um bocadinho sobre a HBO. Não é estranho que a WarnerMedia, tendo já o seu próprio serviço de streaming, venda um produto que podia inserir no seu catálogo? É possível que a Warner tenha descartado anime como fonte de entretenimento lucrativo, afinal (do que sei) nem as séries anime transmitidas na Adult Swim foram incluídas na HBO. O conflito de licenças não me parece grande impeditivo, se têm a Crunchyroll, têm a maior parte das licenças de transmissão.

De qualquer modo, ao rejeitar esse conteúdo e ao realizar esta venda, a HBO perde toda uma comunidade de potenciais subscritores para outros serviços, como por exemplo para a Netflix, que cada vez mais aposta em anime.

A HBO poderá perder aqui uma frente de batalha, restando-lhe os cartoons para combater as animações presentes no catálogo da Disney+, ou para combater a crescente aposta da Netflix em originais de anime.

Sony + Crunchyroll – Positivo ou Negativo?

Quando acontecem estes casamentos, que juntam dois universos que tanto adoro, a minha primeira reação é sempre muito otimista: isto vai ser bom, a Crunchyroll com uma gigante japonesa ao lado vai ter acessos facilitados às licenças, vamos ter melhores e maiores catálogos, vamos ter mais produção de anime por outras companhias que estão historicamente mais próximas dos fãs, etc, etc.

As coisas raramente são assim tão simples… Portanto, o que poderá correr bem ou mal?

  • Monopolização dos serviços streaming de anime

Negativo: A monopolização de um serviço é sinónimo de exploração de um mercado de modo abusivo e sem espaço para competição. O que significa que a Sony, com a compra da Crunchyroll e anteriormente da Funimation, poderá controlar quase totalidade do mercado de streaming de anime licenciado no ocidente. Isto impede a eventual entrada de novas empresas que possam apresentar melhores catálogos, melhores serviços e melhores preços aos consumidores.

Positivo: No que diz respeito a serviços de streaming, tenho uma certa reticência em encarar alguma monopolização como algo mau. Pelo menos enquanto serviços como a Netflix forem bons e satisfizerem o preço que pago por eles. Ou seja, para quê ter mais serviços no mercado, a dividir os catálogos por diferentes casas, obrigando o consumidor a subscrever a múltiplos serviços, acabando por gastar mais por mês? A Sony tem a oportunidade de apresentar um bom serviço, sem mexer muito no preço, aliando Funimation+Crunchyroll, numa única mensalidade. Prefiro pagar 7€ numa plataforma que agrega tudo, do que andar a pagar 5€ em mais do que uma plataforma. Ou, pior ainda, só ter disponibilidade financeira para investir 5€ e ter de escolher muito bem a que plataforma subscrever.

  • A Sony está a comprar insatisfação

Negativo: Em 2014 estive um ano subscrito ao serviço da Crunchyroll, do qual desisti por insatisfação. Atualmente usufruo apenas da parte gratuita. Passados tantos anos, muitos dos problemas ainda se mantêm: parte das legendas têm qualidade inferior às produzidas pelos fansubbers, utiliza tecnologias obsoletas conduzindo a constantes interrupções na stream, a qualidade de imagem nem sempre é a melhor possível para o título em questão, alguns países (do qual Portugal faz parte) têm catálogos extremamente reduzidos, sendo obrigados a recorrer a VPN ou à pirataria, e não são claros quanto à forma como as nossas subscrições contribuem para a indústria anime;

Positivo: Os recursos que a Sony tem ao seu dispor podem ser investidos para colmatar todas estas falhas, transformando a Crunchyroll num serviço completo, com uma melhor user experience.

  • Poderá ser adicionado ao PlayStation Network

Negativo: Tal como já acontece na Steam, uma plataforma digital de videojogos, a PlayStation Network poderá começar a disponibilizar anime, potencialmente através do serviço de subscrição PlayStation Plus, o que poderá elevar o preço desnecessariamente, descontentando quem não se interesse por anime;

Positivo: Poderá ser adicionado ao PlayStation Plus sem qualquer custo adicional, ou como plano adicional que compense ao consumidor de videojogos que também gosta de anime. Além disso, tal como acontece no PlayStation Plus, onde mensalmente são disponibilizados gratuitamente jogos, poderá acontecer o mesmo com títulos anime que a Sony tenha licença.

  • A Indústria Anime poderá sofrer ainda mais

Negativo: Esta compra poderá aprofundar o pouco lucro que chega à indústria anime se mantiverem o modelo praticado pela Crunchyroll, intensificando as más práticas que já existem na indústria.

Positivo: O modelo de negócio poderá ser alterado e com isso melhorar as condições da indústria anime.

E agora alguns pontos positivos dos quais não antevejo nada de muito negativo:

  • A Sony é uma empresa japonesa o que poderá facilitar a comunicação com os estúdios, canais, produtores, editoras, etc;
  • Poderão aumentar as adaptações de anime com videojogos como material fonte e vice-versa;
  • A Sony é detentora de poderosas e criativas companhias com peso na indústria, como a Aniplex (produtora de Demon Slayer), CloverWorks (estúdio de The Promised Neverland) e A-1 Pictures (estúdio de Sword Art Online), o que poderá levar a um aumento de quantidade e qualidade dos Crunchyroll Originals;
  • A Sony já tem experiência anterior na produção e transmissão de anime na PlayStation. Em Abril de 2009 produziu, em parceria com a Bones e com a Aniplex o anime Xam’d: Lost Memories, que apesar de uma narrativa amena tem uma produção audiovisual incrível.

Conclusão

Acho extremamente improvável, mas existe a triste hipótese da Sony simplesmente comprar e não fazer nada com o produto. Afinal não seria muito diferente do comportamento da Warner Media: comprou apenas para lucro extra. A Sony comprou a Funimation e, até onde sei, nada fez de significativo com o serviço.

Estou confiante que desta vez será diferente e que se avizinham dias melhores para os fãs de anime, para os serviços de subscrição que alojam anime e consequentemente, para a indústria anime.

Ou talvez seja apenas o meu optimismo a falar por mim.

Nota:

  • A forma como a Crunchyroll cresceu tem tanto de bom como de mau, o que o torna complicado de categorizar apenas por certo ou errado.

O seu comportamento prejudicou muitos autores, estúdios, teve impacto negativo na indústria de anime, explorou utilizadores para os uploads, legendagem e até controlo de qualidade. Por outro lado, salvou estúdios e criou uma indústria onde alguns dos fansubbers puderam profissionalizar-se. É um assunto com muito pano para mangas e discussão.

Para informação adicional, e muito mais detalhada, sobre como a Crunchyroll cresceu com e através da pirataria, e de que formas o crescimento nestes moldes teve impacto nos utilizadores e na indústria anime, aconselho a leitura da tese “From Piracy to Legitimacy: The Rise of Crunchyroll and the Exploitation of Digital Labour” a qual faz um trabalho exemplar na reflexão deste tema.


Insaciável curioso e consumidor de literatura, videojogos, cinema e anime. Tem preferência por uma boa história. Podes segui-lo em @Riuuzaki_23.

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