Cowboy Bebop: Live-Action – Análise

O anúncio de mais uma adaptação live-action, desta vez do clássico de ficção-científica do final da década de 90, Cowboy Bebop, fez-se acompanhar da natural polarização de expectativas: uns muito entusiasmados e positivos pelo potencial sucesso, outros muito reticentes e certos do iminente fracasso.

Não conseguiu ser um, nem o outro, ao mesmo tempo que conseguiu ser os dois e provavelmente das formas menos esperadas pelos dois grupos.

Pouco tempo depois do anúncio inicial veio a revelação dos atores que estariam responsáveis por dar vida ao trio de protagonistas. As críticas às escolhas também não tardaram a chegar. John Cho era aparentemente muito velho para interpretar Spike, Daniella Pineda não tinha as medidas irrealistas do corpo da Faye e Mustafa Shakir não era da mesma raça que o Jet.

Em poucos episódios os atores dos protagonistas provaram que não seriam o problema da adaptação. Pelo contrário, são bastantes os momentos que me fizeram esquecer que estava a ver pessoas a interpretar as personagens que conheço há tantos anos. Existem sequências inteiras que eu sinto que estou a olhar para o Spike, para a Faye e para o Jet. A essência deles está toda lá. Os atores procuraram constantemente respeitar as origens, conseguindo muitas vezes criar uma genuína e palpável química nas suas interações, apesar de um guião que os obriga a agir e a dizer coisas que os poderia afastar desses mesmos momentos (e que muitas vezes afasta).

As preocupações também estavam concentradas na banda-sonora. Como seria possível alguém compor uma abertura e um conjunto tão icónico de faixas que edificam e permeiam o original? A produção entendeu muito bem que não era possível, então resolveu o problema. Desde muito cedo que a compositora do original, Yoko Kanno, foi anunciada para regressar à franquia e compor mais um conjunto de faixas, que, novamente, estão deliciosas e dão textura e força a muitas cenas. Também não está aqui o problema.

É certo que a ausência de batalhas entre naves espaciais fez-se sentir, ou até de cenas de ação no espaço, algo bem presente no original. Existem planetas que estão bem criados, que parecem tirados da ficção científica especulativa idealizada no original, mas existem outros tão normais que podem ter sido tirados de uma sitcom qualquer. Existem roupas muito bem traduzidas para o live-action, outras nem por isso. Existem sequências filmadas de forma estranha, sem grande sentido ou criatividade, mas existem outras que não só recriam o original como conseguem adicionar-lhe respeitosamente algo. Portanto, apesar dos altos e baixos, o problema também não está nos efeitos especiais, nos cenários, no guarda-roupa, na cinematografia, tudo isso está no geral muito bem recriado.

Foi maravilhoso ver icónicas naves como a Swordfish II a ganharem vida, e entusiasmante passar tempo numa recriação dos interiores da Bebop.

Permanece a impressão errada de que as adaptações live-action falham pela dificuldade em recriar na realidade aquilo que existe em animação 2D. O que não é verdade. Para tudo que seja possível imaginar em animação 2D, existem artistas e tecnologia mais do que capazes para recriar em ambiente 3D. O problema das adaptações é quase sempre o mesmo: a escrita.

Cowboy Bebop, o original, é sobre três pessoas, solitárias, incrivelmente boas, mas injustamente maltratadas, que fogem dos seus passados, até serem inevitavelmente apanhados por eles. As suas histórias não têm nada de novo. Até tendo em conta o ano em que foi lançado, 1998, as histórias de Cowboy Bebop são todas familiares. O Spike foge de uma organização criminosa com a qual deixou de concordar, a Faye tem amnésia depois de anos em criogénese e o Jet é um ex-polícia injustamente expulso por alegada corrupção. Tudo histórias que podem encontrar em filmes, séries e anime dos anos 40 aos anos 90.

Os responsáveis pela adaptação – por muito amor que tenham pelo original, o qual não coloco em causa – parecem ter dificuldade em compreender o que torna Cowboy Bebop especial. O que faz dele um clássico intemporal, não é o conteúdo em si (embora também o seja) mas a forma como esse conteúdo é apresentado à audiência. No anime conhecemos as personagens e a sua respetiva “bagagem” através de ações, conversas, por aquilo que não dizem e por aquilo que fica por dizer mas que é implícito. Por subtilezas, por breves flashbacks que não passam de memórias gastas pelo tempo e que somos obrigados, juntamente com as personagens, a decifrá-los episódio a episódio, para no final conseguirmos ou não chegar a uma conclusão. Porque nem sempre existe uma.

No anime entendemos que o Jet atua como figura paternal da tripulação Bebop, não só pela natureza dele, mas também porque é isso que o Spike e a Faye precisam, mesmo que não o saibam. Não precisamos que o Jet tenha realmente uma filha para o percecionarmos como um pai incrível. Entendemos que o Spike sofre diariamente com um forte desgosto que deriva daquele que terá sido o único amor da sua vida, não precisamos de ver episódios inteiros da relação dele com a Julia para sentir isso.

O Vicious é frio, calculista, implacável, sádico e ambicioso, tudo características que no anime percebemos pelos breves mas eficazes momentos em que aparece. Sentimos receio pela sua imprevisibilidade, precisamente por não termos contacto suficiente com ele para o desmistificarmos. Na adaptação dedicam-lhe episódios inteiros, despindo-o de todo mistério, tratando-o como um vilão que é apenas vilão para ser vilão. Infantilizam-no e reduzem-no a um mero animal com sede de sangue e poder. Para quê explicar o que não precisa de ser explicado.

Cowboy Bebop não se transformou num clássico por contar uma história cliché, numa estrutura linear, tal como faz o live-action. Transformou-se num clássico pela complexidade disfarçada com que conta a história. É isso que lhe dá tanto sabor, tanto charme, é isso que o torna cativante, é isso que nos faz querer saber mais sobre ele, é isso que nos faz querer passar mais tempo com aquelas personagens e é por tudo isto e muito mais que é tão difícil despedirmo-nos delas.

Os maiores erros da adaptação, quer tenha sido por escolha, quer tenha sido por incapacidade de replicar a escrita genial de Shinichirō Watanabe e de Keiko Nobumoto, são a simplificação e expansão que desrespeitam o original e subestimam a audiência, transformando-a num cliché previsível, preenchido de lacunas narrativas e momentos embaraçosos.

Este é o maior problema, e, ainda que não seja o único, todos os outros também estão relacionados com a narrativa. Outro problema é a forma como alteram pormenores que desvirtuam por completo o sentido original da narrativa, acabando como versões inferiores da mesma ideia. Por exemplo, um dos melhores episódios a todos os níveis, Darkside Tango, que se dedica a contar parte do passado do Jet, é simultaneamente um delicioso tributo à estrutura visual e narrativa do género noir e uma respeitosa adaptação do episódio original Black Dog Serenade. No entanto, por alguma razão que me escapa, decidiram alterar as motivações de uma personagem-chave, o que inevitavelmente altera de modo inferior o significado de todo o episódio e de todo o arco emocional subjacente (passado do Jet e a relação que ele tem com a personagem).

A grande ironia deste live-action é de ter conseguido (finalmente!) uma maravilhosa e fiel adaptação de um anime aos pequenos ecrãs – embora apenas nos poucos momentos que se dedicou a tal – ao mesmo tempo que corrompeu esse feito ao ter preferido a via de “expandir” e “reorganizar”, de formas muito pobres e incompreensíveis, algo que não precisava de ser expandido nem reorganizado.

No seu melhor, Cowboy Bebop Live-Action consegue traduzir para o pequeno ecrã as maiores qualidades do original, no seu pior não passa de uma série de ficção científica medíocre.

O que nos leva à eterna questão que surge aquando de uma adaptação live-action: para quem é? A série não tem uma identidade definida. Tanto é uma adaptação fiel (especialmente nos 3 primeiros episódios, a partir daí é sempre a descer), como é uma sequela, como é uma prequela, como é uma expansão…

Não agradará assim aos fãs do original, porque remove praticamente tudo que fazia dele algo apelativo para esses fãs. Estes, pelo menos tanto quanto sei, e enquanto fã do original, também não estão interessados numa prequela, numa sequela ou numa expansão. O original tem princípio, meio e fim, e tem tanto conteúdo que pede mais que uma visualização.

Por outro lado, também não me parece servir para introduzir ninguém à obra pois quem o vir primeiro vai ficar com uma noção e conhecimentos errados e nem sequer terá informação suficiente para entender as personagens principais porque parte da caracterização pressupõe que os conheces do original.

Esta adaptação live-action não tem identidade, é tudo e nada ao mesmo tempo e, por isso, também não conseguirá ter um público definido.

Como demonstrado nos primeiros episódios, tinha potencial para ser uma das melhores adaptações a live-action. Deixa-se atropelar pela constante adição e expansão de novas histórias – que não conseguem ter nem a forma nem o conteúdo do original – desvirtuando-o por completo. Infelizmente, opta por substituir a saborosa alma do anime pelo sentimentalismo corriqueiro, não conseguindo assim, tal como muitos casos que a precedem, justificar a sua existência.

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