Demon Slayer Temporada 2 – Análise

Uma vez que já nos encontramos na segunda temporada de Demon Slayer (e terceira adaptação anime), os spoilers tornam-se quase inevitáveis. Optei por escrever uma análise mais detalhada e direcionada a quem viu, dedicando essencialmente estes primeiros parágrafos a quem ainda tem dúvidas se deve ou não começar.

Dito isto, se viste a primeira temporada e o filme e sentiste que foi um tempo bem passado, então não existe qualquer razão para não ver a segunda. Os defeitos são os mesmos, embora alguns começam a dar mais sinais. As qualidades permanecem e algumas são elevadas.

Por fim, quer tenhas visto ou não o filme, vê a primeira parte da temporada. Para quem não viu é uma boa forma de o experienciar, e para quem já viu existem por lá pormenores que tornam a experiência de rever aqueles momentos em algo ainda melhor.

Nota: A partir deste ponto o texto está preenchido de spoilers sobre o anime, mas não tem nenhum conteúdo sobre o manga.


O início do Entertainment District Arc é possivelmente uma das partes mais bem escritas de Demon Slayer. Por duas razões: pela demonstração subtil da escala de poderes (embora o seu aprofundamento me preocupe. Sinto que não haverá tempo para a narrativa explorar com credibilidade o que esta dimensão exige); e pela forma como conclui a história do filme, mais especificamente o arco emocional do Rengoku.

Começando pelo desfecho emocional de Mugen Train, realizado através da visita de Tanjiro à família do Rengoku, que faz uso da poderosa viagem emocional que foi o filme, ao colocar Tanjiro a fechar duas pontas soltas que Rengoku não viveu tempo suficiente para fechar: libertar o irmão da sufocante responsabilidade de seguir um caminho que não quer (treinar para ser um Hashira) e expor o pai à sua casmurrice conservadora tradicionalista, rebentando-lhe aquela bolha emocional que o próprio recusava enfrentar (morte da esposa, reconhecer o valor dos filhos, etc). Neste segmento só tenho pena pela forma estranha, e no geral forçada, de como a informação sobre a Hinokami Kagura foi entregue a Tanjiro pelo pai do Rengoku. Percebo porque aconteceu: até agora nunca tinham tocado neste assunto de forma mais desenvolvida, mas havia intenção de utilizar essa mesma informação na batalha final do arc, não havendo alternativa que não a de a inserir aqui.

Agora, falemos sobre o preocupante aprofundamento da escala de poderes. No Mugen Train, os protagonistas deparam-se pela primeira vez com um demónio de nível superior, neste caso um Upper Rank Three, o Akaza. Conhecendo assim o poder devastador de um demónio, capaz até de derrotar um dos Hashira mais hábeis, criando um fosso indescritível entre as capacidades de Tanjiro, Inosuke e Zenitsu, quando comparadas às de um Hashira ou às de um demónio que se encontra “apenas” a meio da tabela dos Upper Ranks.

No início da segunda temporada, Akaza, o demónio que tinha sido apresentado como temível, devastador, inultrapassável, revela medo e total inferioridade perante Muzan. Este simples momento, que consiste numa curta conversa entre os dois para informar Muzan dos eventos retratados em Mugen Train, apresenta-nos um Akaza totalmente aterrorizado pela simples presença de Muzan. Em poucos minutos, percebemos o quão longe os protagonistas estão de realisticamente derrotar o boss final.

O que faz dele um momento sublime, mas que inevitavelmente me leva à preocupação. Sobretudo, porque a segunda parte da temporada, aquela que se centra no Entertainment District Arc, revela uns e inicia outros problemas que serão acentuados daqui para a frente. Tanto quanto sei (não li o manga para além deste ponto), a narrativa não é longa, mas está a montar toda uma escala de poderes que exige tempo para ser explorada e que exige uma narrativa longa para que haja uma progressão orgânica dos protagonistas. Sinto, no entanto, que isto não vai acontecer e a segunda temporada já começou a dar sinais disso.

 

Em Entertainment District Arc, os protagonistas enfrentam pela primeira vez diretamente um Upper Rank, neste caso o número 6, ou seja o mais fraco de todos os Upper Rank. Têm uma dificuldade enorme em lidar com ele, mesmo com a ajuda de um Hashira. E pelo que vimos na primeira cena entre o Muzan e o Akaza, não terão tempo para progredir de forma credível para que, quando o momento chegar, a derrota do Muzan se sinta plausível. Esta longevidade curta da narrativa, casada com o fraco desenvolvimento de personagens, cria e acentua dois problemas que já são inevitáveis, chamados Zenitsu e Nezuko.

Eu adoro a personalidade do Zenitsu sonâmbulo. Aliás, enquanto ele dorme é das melhores personagens de Demon Slayer. Primeiro porque está calado, segundo porque tem mais caracterização do que a sua versão acordada que tem apenas dois traços de personalidade: medricas e histérico. Na versão sonâmbula é a personificação da sua Thunder Breathing: perspicaz, incisivo, sereno, poderoso e com uma interessante presença no ecrã. Tal conduziu a narrativa a uma bota que a mangaka provavelmente não conseguiu descalçar. Aquilo que começou como um artifício engraçado, um rapaz medroso que vira badass quando está a dormir, transforma-se progressivamente em algo ridículo. Ele está literalmente a pensar e a conversar enquanto dorme. Nos diversos treinos este desenvolvimento já deveria ter sido realizado, começa a ficar tarde.

Para além disto, em situações de crise a narrativa começa a recorrer à Plot Armor designada por Nezuko, que tem ao seu dispor um arsenal de habilidades totalmente desenhadas para remover os protagonistas de qualquer perigo. São derrotados? Não faz mal, a Nezuko acorda do seu soninho e dá cabe de qualquer demónio, seja ele um demónio faminto ou um Upper Rank (mesmo que nunca tenha treinado ou se alimentado de um ser-humano). Estão envenenados? Não faz mal, a Nezuko acorda novamente do seu sono e usa o seu Blood Demon Art, que só por acaso é um Blood Demon Art super efectivo apenas contra demónios.

Nada disto é em si mau ou injustificável. Tem o seu sentido e é bonito de ver, uma vez ou outra. Daí a minha adjetivação inicial: “bem escrito, mas preocupante”. Neste momento temos uma escala de poderes gigante, uma narrativa curta pela frente e a Nezuko a ser posicionada como as Bolas de Cristal de Dragon Ball. O momento do Akaza com o Muzan é muito gostoso, é um lembrete do longo caminho que Tanjiro tem pela frente, mas a premonição que dele advém é por isso igualmente preocupante, especialmente tendo em conta que não existe tempo suficiente para desenvolver os poderes do protagonista sem recorrer aos artifícios mencionados em cima (sendo um dos exemplos a Nezuko, mas há mais).

A escrita das personagens de Demon Slayer sempre teve tanto de bom como de mau. O Entertainment District Arc revela bem isso e só continuará a ser um problema daqui em diante. Caso em questão: neste arco narrativo temos a oportunidade de conviver com mais um Hashira, Tengen Uzui. Design incrível, personalidade cativante e um passado sobre o qual queremos saber mais e mais. Tem relações com os outros Hashiras, havendo uma ligação especial com o Rengoku. Contudo, tanto o seu passado como a sua relação com o Rengoku, são apenas contados durante o arco ou no final. Portanto, apesar de ser uma personagem que rouba a atenção mal aparece no ecrã, perde parte do potencial porque as coisas só nos são apresentadas depois. Exemplo: para o final da batalha é-nos dado a entender que o Rengoku conversara com o Uzui sobre o Tanjiro, dizendo-lhe para cuidar dele pois seria a esperança da humanidade quando atingisse o seu potencial. Não seria mais interessante sabermos isto de antemão? A batalha dos dois em conjunto (Tanjiro e Uzui), a protegerem-se um ao outro, não teria ainda mais impacto?

O que me leva a um outro problema que já existia na primeira temporada e nesta irritou-me ainda mais. Mexeu mesmo comigo porque as histórias são boas, mas estão constantemente alocadas no sítio errado. Não percebo esta persistência em colocar as histórias depois de elas já não serem necessárias ou importantes. Exemplo: o Upper Rank 6 é composto por um casal de irmãos, tal e qual como o Tanjiro e a Nezuko. O irmão mais velho protege ferozmente a irmã mais nova, traçando um paralelismo muito forte entre os dois lados. Existe logo uma empatia. Agora, imagina que aquela tocante história do passado dos irmãos era contada antes da batalha, ou pelo menos desde o momento em que o irmão surge do corpo dela. Imagina que, durante toda aquela feroz e sangrenta batalha, com muito desespero dos dois lados em proteger os respetivos irmãos, sabias tudo o que aquele par tinha passado antes de ser transformado em demónio. O peso da batalha seria totalmente diferente. Continuaria a existir a deliciosa batalha com uma animação dos deuses, mas teria uma substância por detrás de todo o fogo de artifício.

Não aponto nenhum destes detalhes com intenção de massacrar Demon Slayer. Pelo contrário, destaco-os por serem detalhes que não o deixam ser aquilo que podia ser. Destaco-os por existirem, quer eles atropelem a tua visualização ou não. Para muita gente, nada disto é visível. Para outros, é visível mas não afeta o quanto gostam da obra. E tudo bem com isso. Por enquanto não atropelaram a qualidade de entretenimento e gostei muito da segunda temporada.

Continuo a elogiar a capacidade que a mangaka tem em estruturar uma coreografia de batalha complexa, que faz uso das interessantes habilidades únicas dos demónios para colocar os Demon Slayers a refletir, a ter de trabalhar em conjunto, a ter de descobrir as fraquezas e a mostrar como os poderes interagem todos uns com os outros. Já no filme tinha deixado este elogio, a mangaka é mesmo muito habilidosa na arte de criar mecânicas cativantes para todas as batalhas. Nunca é aborrecido, nunca é apenas um embate entre níveis de poder. Tudo isto é indiscutivelmente elevado a patamares divinos pelo estúdio Ufotable, em muitos casos a coreografia é melhorada e expandida, até para que melhor funcione em animação, mas o conteúdo já está no manga e esse mérito é dela.

Uma boa parte das personagens é interessante de ver, desde a irreverência do Uzui que não era apenas uma característica, tinha razão de existir e propósito, à emocionante empatia nunca gratuita do Tanjiro para com todos os que a espada dele tem de obrigatoriamente cortar. O Gyutaro tem um design excelente, acompanhado de uma dobragem que acentua toda a sua bizarria, consegue literalmente infligir medo em quem o vê e ouve. E não podia terminar a análise sem destacar o quanto este arc é um belíssimo pedaço para amantes da cultura e história japonesa. A reprodução fiel dos cenários, das roupas, dos penteados, da maquilhagem, das hierarquias, das tradições e das formalidades das Geixas, bem como de tudo que naquela época compunha um distrito de entretenimento, servem como um bonito e orgânico pano de fundo que acomoda a história principal.

É por tudo isto, sobretudo por Demon Slayer ter potencial mas não fazer uso dele, que tenho dificuldade em atribuir uma nota justa à adaptação anime. Ao manga conseguiria facilmente. E provavelmente se o estúdio Ufotable não estivesse a fazer um trabalho dos deuses com a adaptação, também conseguiria facilmente. No que diz respeito à adaptação, a primeira temporada está incrível e o filme está incrível ao quadrado. Ainda assim, quando seria de pensar que a Ufotable não poderia surpreender mais, quando seria de pensar que não conseguiria elevar ainda mais o patamar, a Ufotable prova-nos o contrário. Que coisa maravilhosa que só pode ser explicada vendo o anime:

Compreendo por isso o que faz de Demon Slayer um anime apelativo e, na maior parte, desfruto de tudo de bom que ele tem para oferecer, seja a comédia inesperada (como os ratos musculados do Uzui), seja as histórias que caracterizam as personagens mais interessantes (embora pouco explorado, o passado do Uzui e das três ninjas é bonito), seja as deliciosas coreografias de batalha, seja pela forma como o estúdio Ufotable pega em tudo isto e transforma em algo ainda melhor. É um shonen de ação acessível, de fácil digestão e com as suas inevitáveis falhas (inerentes à demografia e à inexperiência da autora).

A segunda temporada de Demon Slayer eleva o significado de entretenimento explosivo para outro patamar, através de uma animação e banda sonora que só acredita nelas quem as viu e ouviu. Os fãs do manga certamente ficarão maravilhados com a cor, movimento e som que o Ufotable trouxe para o pequeno ecrã de tudo aquilo, e muito mais, que noutros tempos leram em páginas de manga a preto e branco.

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