A Memoir Blue: A Journey Into the Depths of Memory – Análise

Quem dedica tempo suficiente a estudar a arte de contar uma história, acabará por eventualmente chegar à mesma conclusão: as grandes histórias já foram contadas, por diversas vezes ao longo dos séculos. E podem ser novamente. Aquilo que, por outro lado, as pode transformar em algo interessante, novo e impactante é a forma como são contadas. Um dos mais recentes títulos da Annapurna Interactive, desenvolvido pelo estúdio Cloisters Interactive, propõe-se precisamente a isso, posicionando-se como um poema interativo.

A Memoir Blue conta a história de uma jovem atleta, cujo sucesso mundial é sinónimo de desconforto, insatisfação e melancolia. A vitória não tem recompensa. É apenas mais um troféu, mais uma medalha, mais um diploma a juntar às dezenas e dezenas que já preenchem e ornamentam a decoração da casa. Num dos seus momentos de introspecção, somos convidados a mergulhar com a protagonista nas suas memórias, inevitavelmente familiares (quer por nos relacionarmos com elas, quer por já as termos visto retratadas noutras artes).

As memórias contam-nos pedaços do seu passado, centrando-se em particular no desenvolvimento da relação que tinha com a mãe e como as pequenas coisas deixam marcas que se prolongam ao longo dos anos, por muito que estejam aparentemente esquecidas. Em última análise, A Memoir Blue conta a história de como a maturidade traz com ela perspectiva para observarmos acontecimentos passados com outra clareza, ajudando a protagonista a compreender, perdoar e aprofundar o laço emocional que tem com a mãe (entre outras coisas que deixo para descobrires).

Se vês muito cinema e/ou lês com regularidade, certamente sentirás que esta história, que pouco mais é que uma premissa, não desperta interesse. Tivesse sido executada em qualquer outro formato, sem grandes inovações, seria apenas mais uma história. O modo como intervimos nela torna-se por isso crucial para: 1. despertar o interesse; 2. elevá-la a algo mais.

Consegue a primeira, tenho dúvidas sobre a segunda.

Existem experiências interativas nas quais o jogador tem um papel mais ativo, como por exemplo Heavy Rain e 12 Minutes, nos quais as decisões do jogador têm impacto na forma como a narrativa se desenvolve, havendo até finais alternativos dependentes das escolhas. A Memoir Blue cai para o outro lado deste género de jogos: podemos interagir com o jogo, mas as nossas ações têm zero impacto no desenlace. E não é esse o problema dele. Pelo contrário! Por exemplo, quando estamos a ler um livro, existe o ato de folhear as páginas para avançarmos na história. Não temos um papel ativo na história, mas ela depende de nós para se revelar. Aqui, esse folhear é transformado numa interação que temos com as memórias da protagonista, que apenas são despoletadas se o fizermos acontecer.

Sem grandes spoilers, na cena de abertura a câmara leva-nos até à janela da sala, fixando num bonito plano com vista panorâmica para uma cidade, iluminada pelo sol. Sempre que o plano fixa, significa que a história chegou a um ponto que temos de folhear a página, que será – quase – sempre feito de forma diferente. Neste caso, temos de agarrar no sol e puxá-lo para baixo, simbolizando assim a passagem de tempo. Existem outras ocasiões que temos de, pouco a pouco, verter gotas de água num vidro embaciado, outras em que temos de raspar a ferrugem de um espelho, ou simplesmente cortar a vegetação que nos bloqueia o caminho para mais um pedaço da história.

Este folhear de página torna-nos responsáveis por ir desvendando tudo o que, de alguma forma, acabou bloqueado pelo esquecimento, pelo trauma e pelo tempo, metaforizados através de ferrugem, embaciamento ou sons esbatidos e longínquos, pouco ou nada percetíveis. Os pequenos puzzles que nos são colocados estão diretamente relacionados com o ato de desenferrujar, desembaciar, tornar audível, iluminar recantos escuros, para que tenhamos acesso a mais um pedaço de memória.

A Memoir Blue: A Journey Into the Depths of Memory A Memoir Blue: A Journey Into the Depths of Memory

A grande qualidade de A Memoir Blue, a forma como conta a história, é também o seu grande defeito, ligeiramente atenuado pela curta duração que tem (aproximadamente uma hora). Alguns dos pequenos puzzles que desbloqueiam as memórias, ainda que pouco ou nada desafiantes, têm impacto emocional, mas na sua maioria a interpretação é direta sem necessidade de pensar muito, não deixando espaço para sentir seja o que for. A repetição e simplicidade vulgarizam a mecânica, transformando-se, literal, e rapidamente, no ato banal de folhear uma página, perdendo por vezes o sentido de existir como videojogo.

Respeito imenso a ideia. É atraente inovar o ato de folhear, transformando-o num elemento narrativo que também adiciona corpo à história. Substituir este ato pela resolução de puzzle com conteúdos metafóricos, que nos dão acesso a mais uma quadra do poema, representada por linhas de memórias que contam uma história, é suficiente para o transformar numa experiência importante de ser jogada. Em contrapartida, a repetitividade da execução, as transições pouco ou nada suaves e os loadings gigantes, impedem que A Memoir Blue seja a experiência memorável e emocionante que poderia ser (e que eu queria que fosse).

No geral, os defeitos são superados pelas qualidades, intensificadas por uma belíssima banda-sonora, um sound design imersivo e uma deliciosa animação 2D que está ao serviço da narrativa, em especial para contar as memórias mais longínquas, separando-se inequivocamente do presente modelado e animado em 3D. Tudo isto transforma A Memoir Blue numa experiência relaxante e numa bonita forma de contar uma história.

Como amante de boas narrativas, e sobretudo de uma história bem contada, é bom ver cada vez mais maneiras de as contar através dos videojogos. Contar uma narrativa através deste formato pode assumir várias formas, e claramente existe ainda muito para explorar de modos muito criativos. Têm a difícil tarefa, como filme ou livro interativo, de manter o espectador investido na história, não pela história, mas pelas mecânicas que a tornam possível. A Memoir Blue conseguiu isso na maior parte do tempo e sobretudo prova que ainda há muito para fazer neste campo, já que se trata de um género em maturação.

Algumas notas antes de terminar. Joguei-o na Nintendo Switch, o que para mim foi ótimo. É uma bonita experiência para se ter deitado no conforto, tornando-a ainda mais relaxante. O jogo foi claramente desenhado para ser jogado com o rato, pela forma como tudo está disposto para criar a interação. Se jogares na Switch aconselho a que o faças em modo portátil, poder usufruir das capacidades touch do ecrã para interagir com os puzzles cria uma maior sensação de imersão.

Mesmo sofrendo com uma execução incapaz de concretizar em pleno aquilo a que se propôs, A Memoir Blue parece-me uma experiência obrigatória para quem procura narrativas interativas capazes de introduzir algo de novo ao género. A concretização plena das mecânicas fica pelo caminho, mas a curtíssima longevidade do jogo, a bonita história, banda-sonora e animação, impedem que se traduza num problema intransponível. Admito que desejei que A Memoir Blue fosse mais do que aquilo que acabou por ser, mas o pequenino e importante passo que dá na evolução das histórias interativas acaba por desculpá-lo.

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