Gylt – Análise

Quando o silêncio é conivente, pode ser fatal; quando o silêncio é interrompido por uma onda de resiliência e solidariedade, eis que é possível jogarmos Gylt, um jogo que aborda de forma profunda os efeitos derivados do bullying.

Gylt, da Tequila Works, foi lançado em 2019 como um exclusivo do falecido Google Stadia. Para que o jogo não tivesse o mesmo desfecho, a produtora decidiu tornar o jogo multiplataforma, com lançamento planeado para o dia 6 de junho. Gylt é um jogo apropriado para todos aqueles que desfrutam de uma narrativa curta, survival horror, com mecânica de stealth intensa, combate simples, e puzzles que estruturam o game design.

Múltiplos significados

Este survival horror está longe de ser o jogo perfeito, mas talvez seja o estritamente necessário para passar uma mensagem curta, simples, e que sendo ouvida, pode mudar o epílogo de muitas histórias reais. Este fenómeno é muito importante, de uma forma geral, para a indústria dos videojogos – uma indústria que é vista maioritariamente como entretenimento, sem qualquer tipo de didatismo. Então, na verdade, Gylt não precisa ser perfeito, precisa ser real e uma prova de que é possível impactar através dos videojogos.

O mundo de fantasia de Gylt está repleto de coisas cujo significado representa algo bastante real. Vestimos a pele de Sally, uma jovem estudante que está à procura da prima, Emily, vítima de bullying que desapareceu sem deixar rasto. A missão do jogo fica bastante evidente a partir daqui: encontrar Emily, custe o que custar.

“Custe o que custar” é algo que dizemos quando estamos desmedidamente focados num objetivo, do qual não tencionamos abdicar e, de forma até pouco refletida, encontramo-nos dispostos a (quase) tudo para o alcançar. Sally encara o desaparecimento de Emily dessa forma, e quando dá por ela, já está envolvida num mistério que lhe pode custar a própria vida. E aqui temos a primeira mensagem subliminar da Tequila Works: ajudar alguém que precisa é sair da zona de conforto – o que é bastante difícil numa sociedade egocêntrica, com elevados moralismos, mas pouca atitude, como a nossa.

Na viagem em busca de Emily, Sally entra numa espécie de mundo paralelo, onde a realidade é completamente desfigurada. Há monstros; edifícios ao contrário, destruídos e inacessíveis; e a noite prevalece. Por mais violento que seja o mundo real, o que é certo é que é naquele mundo onde Sally enfrenta os piores pesadelos. Aqui, estamos perante a segunda mensagem da Tequila Works: se Sally quer encontrar a prima, tem de viajar para o sítio onde Emily está.

Este mundo paralelo é, na verdade, o mundo que Emily vê. Um mundo sem esperança, bondade, alegria ou vontade de viver. Os monstros, as formas estranhas, bem como outros elementos bizarros, representam não só a dor e sofrimento de Emily, como também a sua perceção das coisas. A saúde mental é um tópico cada vez mais presente, e em simultâneo, continua a ser dos mais menosprezados. E, talvez este seja o verdadeiro motivo para a Tequila Works ter optado por “Gylt”, que na verdade significa Get your life together (Encontra um rumo para a tua vida).

Curiosamente, a principal ferramenta que manuseamos com Sally é uma lanterna. Conseguimos resolver puzzles com ela, enfrentar monstros, ou desbloquear acessos. Cheguei até a sentir algum poetismo por parte do jogo. A lanterna representa luz, esperança e consequentemente salvação. Mas a Tequila Works não ficou por aí. Há um elemento particularmente importante em Gylt: os canários. Ao longo do jogo, vamos encontrando canários engaiolados, e ao apontarmos a lanterna, a gaiola abre, e eles voam livremente. Aquando do gameplay, não sabemos por que o fazemos, mas acreditamos que a simbologia do pássaro vai trazer-nos algo extremamente benéfico para a missão de encontrar Emily com vida.

Existem três finais possíveis, e acreditem que a forma como escolhem interpretar estes elementos à vossa volta, vai influenciar drasticamente o desfecho da história e da relação entre Sally e Emily.

Jogabilidade

Quando digo que Gylt não é o jogo perfeito, refiro-me à jogabilidade e outros aspetos que compõem o seu conceito. Apesar da aparência cartoonesca, não considero Gylt um jogo para crianças, mas a simplicidade do gameplay também não é suficientemente desafiante ou assustadora para o público mais adulto.

Há realmente poucas coisas que, enquanto jogadores, devemos considerar para executar eximiamente o gameplay de Gylt. A mecânica de stealth é constante, e não há momentos em que nos sentimos realmente desafiados. Até mesmo em sítios onde há um número considerável de monstros, basta lançar uma lata para longe e passamos com uma facilidade tremenda.

A lanterna, quando utilizada para iluminar o ambiente que nos rodeia, não gasta bateria. No entanto, quando queremos enfrentar algum monstro ou resolver puzzles, temos de fazer mira. O disparo da luz gasta bateria, o que implica que tenhamos de descobrir recargas que se encontram espalhadas pelo mapa. Não senti qualquer tipo de dificuldade ou necessidade em gerir recursos, pois o número de baterias por metro quadrado é quase tão ilógico quanto os monstros que têm a boca na testa e os olhos no queixo.

Isto significa que é extremamente fácil evitar o confronto com monstros que atrapalham o nosso caminho e, consequentemente, sentimos pouca necessidade em recuperar vida. Podemos depreender que Sally é asmática, já que o objeto que nos faz recuperar a barra de vida são inaladores que estão espalhados pelo mapa. Deixei praticamente todos por apanhar, exceto nas lutas contra bosses, onde tive de gastar uma mão-cheia deles até descobrir como os derrotar. Ainda assim, esta sensação também é sol de pouca dura, já que não há variedade de inimigos mais fortes, e até mesmo o combate final assume o formato de uma fuga, com uma vertente mais cinematográfica do que propriamente jogável.

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