Star Wars: Visions – Análise

Os filmes estão longe de ser a parte mais interessante de Star Wars. As prequelas deixaram isso bem claro e as sequelas esmurraram um saco de pancada roto e caído. Sou fã de ficção científica, gosto muito do universo de Star Wars e é indiscutivelmente uma das franquias mais ricas em conteúdos da cultura pop. Uma afirmação provavelmente estranha para quem só viu os filmes. Talvez menos estranha atualmente, porque a chegada do delicioso The Mandalorian tem servido para deixar essa mensagem mais clara.

Banda-desenhada como SW: Darth Vader e SW: Knights of the Old Republic, jogos como SW: Knights of The Old Republic e Lego SW, e tudo o que se encontre para além das narrativas cíclicas e gastas, sempre foram e continuam a ser as histórias mais interessantes, que extraem todo o potencial de sci-fi presente em SW.

Star War: Visions é, nesse sentido, mais uma lufada de ar fresco muito bem-vinda. Preserva os temas que geralmente servem de unificadores de todo o universo multimédia de Star Wars, nomeadamente a esperança, amor, família, coragem, integridade face à tentação e dúvida. Acrescentando ainda uma agradável surpresa, transversal a todas as curtas, a exploração dos lightsabers.

Nos filmes, os sabres de luz têm uma importância extrema, muitas vezes mencionados como uma das mais importantes armas no arsenal de um Jedi (a par da Força). Para quem só viu os filmes, e não teve qualquer contacto com as banda-desenhada onde isto é explorado, ficou sem entender verdadeiramente o porquê dos lightsabers serem tão importantes e raros (nem sequer como são construídos).

Para além dos temas clássicos da franquia, este é um dos mais prevalentes nesta antologia de curtas-metragens, composta por nove episódios, estreada no passado dia 22 de setembro no Disney+, que marca a primeira série de anime original a entrar no catálogo do serviço de streaming.

A quem se destina?

Apesar dos temas transversais, cada curta-metragem conta uma história independente – podes ver a antologia pela ordem que te apetecer -, e também elas independentes do universo de Star Wars. Ou seja, todos os episódios estão intimamente conectados à narrativa de Star Wars e as histórias contadas não poderiam existir sem ele. Existem nomes de personagens, armas, naves, iconografias, temáticas, locais, referências que só podem ser compreendidas por quem viu pelo menos a trilogia original e que localizam estas histórias no universo de Star Wars, ajudando a contar a história pretendida sem recorrer a longas e desnecessárias exposições.

Preserva os temas unificadores de todo o universo Star Wars, esperança, amor, família, coragem, integridade face à tentação e dúvida.

Por exemplo, e para demonstrar como as narrativas se servem do lore para atalhar nas histórias, no episódio Tatooine Rhapsody, o Boba Fett e o Jabba the Hutt marcam presença como antagonistas. A curta não precisou de explicar nem quem são, nem o que fazem. Já é sabido que são mercenários, caçadores-de-recompensas e lordes do crime organizado. Ou como no The Ninth Jedi, a história parte do princípio que tens algum conhecimento da extinção da Jedi Order, etc. A caracterização está feita há décadas e Visions serve-se destas “pequenas” coisas para atalhar.

Os fãs vão apreciar e obviamente compreenderão totalmente cada episódio. Ao mesmo tempo, as histórias da antologia não se prendem a estes pormenores para contar o que pretendem. Se és fã de anime e nunca viste SW vais certamente apreciar na mesma cada episódio. Até porque existem neles duas linguagens distintas que casam muito bem: a linguagem SW e a linguagem anime. Enquanto fã de animação japonesa vais compreender outras coisas que um fã de SW não vai pescar tão facilmente e vice-versa.

 

As histórias e o seu propósito

Os escritores asiáticos são por norma exímios mestres na criação de histórias profundas em poucos minutos, mas infelizmente quase não aconteceu. Não sei se por estarem a servir uma franquia, se por estarem fora do seu elemento ou – e é aqui que aposto as minhas fichas – por não ter sido esse o objetivo.

A antologia sofre com as restrições de tempo, e ao contrário de outras antologias de animação como Love, Death and Robots, não conseguiu contar histórias completas, verdadeiramente sentidas e com desenvolvimento. Há um retrato de várias personagens, de várias culturas, de vários locais, mas senti falta de uma narrativa realmente cativante. Mas, como dizia, provavelmente nunca foi esse o objetivo. Talvez a ideia seja antes criar uma espécie de “prova de conceito” (proof off concept).

Os escritores asiáticos são por norma exímios mestres na criação de histórias profundas…

Cada história, à sua maneira, tem capacidade para dar origem à própria série, ou, pelo menos, a uma longa-metragem, criando esta sensação de estarmos perante uma demonstração de vários conceitos e ideias, preenchidos de muita criatividade e originalidade, genuína paixão e profundo conhecimento do universo de SW.

Quem sabe esta antologia seja mesmo isso, uma prova de conceito, e que a Disney futuramente aposte num ou dois estúdios para começar a desenvolver mais Star Wars pelo oriente. A história é importante, mas passa para segundo plano, dando lugar e espaço para o brilharete da animação japonesa.

 

Ambiente

É na produção visual que mais se nota que os estúdios estavam totalmente focados em mostrar aquilo que são capazes e onde realmente é visível, retratado e demonstrado o que é possível fazer com SW. Aqui tudo se comprovou e muito pouco falhou.

Mais do que investidos na história, estes 7 estúdios estavam claramente deliciados em dar vida ao universo Star Wars na boa animação japonesa.

A Kamikaze Douga (Batman Ninja) através da animação 3D e da estética a preto e branco, criou uma belíssima e tensa homenagem aos duelos e movimentos do cinema de Akira Kurosawa; O Geno Studio (Golden Kamuy) surpreendeu com uma das curtas mais bem animadas e completas de toda a antologia; O Studio Colorido (Taifuu no Noruda, A Whisker Away) conseguiu o improvável, levar uma banda para os terrenos áridos de Tatooine; O Studio Trigger (Kill la Kill, Promare) não se poupou à epicidade, com eles será sempre “go big or go home”, especialmente em The Twins; O Kinema Citrus (Made in Abyss, The Rising of the Shield Hero) fez aquilo no que é melhor, criou um bonito e distinto ambiente que por si só foi capaz de caracterizar uma civilização; O Science SARU (Japan Sinks: 2020, Devilman: Crybaby) criou uma das mais experimentais experiências visuais e até narrativas com Akakiri e por fim o Production I.G. (Ghost in the Shell, Psycho-Pass) criou uma sólida narrativa e animação de ficção científica.

 

Guia de Visualização

No caso de não estares habituado a antologias, poderás estranhar o facto de ser composto por vários episódios sem relação. Até porque, sendo uma série, estamos habituados a consumir mais do que um episódio. Neste tipo de compilações sugiro consumir um episódio por dia, ou pelo menos espaçado. Se vires seguido acho que não te darás o tempo necessário para processar o que acabaste de ver. Cada episódio tem um tom e um objetivo muito diferente. Se optares por ver seguido, corres o risco de ver algo como T0-B1 que conta uma história mais infantil, extremamente leve e esperançosa, e depois passares para algo como Akakiri, que é negro, abstracto, denso e que deixa uma sensação de não haver esperança no mundo.

Além disso, as curtas têm qualidades muito variáveis. Certamente haverá umas que vais gostar mais do que outras. Se vires uma muito boa e com a qual te relaciones muito, e logo de seguida vires uma com a qual te relaciones menos, vai custar bastante.

Nesse sentido – e para além de aconselhar a ver espaçadamente cada episódio – vou deixar aqui duas listas separadas por tom/género, organizadas por ordem de qualidade (da que menos gostei para a que mais gostei).

Mais leves (perfeitas para os pais fãs de Star Wars verem com os filhos mais novos):

  • Tatooine Rhapsody
  • T0-B1
  • The Twins
  • The Ninth Jedi

Mais pesadas:

  • The Village Bride
  • The Elder
  • The Duel
  • Lop and Ocho
  • Akakiri

Nota: Visualizei tudo com áudio em Japonês e legendas em português. As legendas estão muitas vezes dessincronizadas (alguns segundos mesmo).

Além disso, existem momentos que nem foram traduzidos. Existem poucos diálogos, para quem estiver habituado a ver anime perceberá perfeitamente o que foi dito. Caso contrário, e se o Disney+ Portugal ainda não resolveu isto, é melhor escolheres outro áudio ou legenda.

Em suma, embora a estética anteceda a substância, ao permitir que outros autores criem histórias sobre novas personagens e novos planetas, a Disney provou (novamente) que existe muito mais e melhor Star Wars, quando se afasta da estreita visão sobre os Skywalkers e do eterno conflito entre Império e Resistência. Já percebemos a ideia na primeira trilogia. Visions demonstra que é possível expandir a franquia com novas ideias, sem nunca deixar de respeitar tudo o que já foi estabelecido ao longo dos últimos 44 anos.

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